Violência Sexual na Família: anotações sobre a ausência de limites[1]
1 – Estas notas se referem à situação vivenciada no contexto das Varas da Infância e Juventude no Brasil, especificamente no tocante aos atos sexuais violentos entre familiares. Representa uma leitura parcial da situação social, num diálogo possível entre o direito e a psicanálise de matriz lacaniana.
2 – Cada vez mais tem-se verificado, no Brasil, a ocorrência de violência sexual contra crianças e adolescentes. Para além das estatísticas, este dado aponta para algo de sintomático, a saber, a recorrência de casos de relações sexuais entre irmãos. Sabe-se que do Declínio da Função paterna, indicado por Lacan no século passado e demonstrado, dentre outros, por Françoise Hurstel[2], na França e Fernanda Otoni de Barros[3], no Brasil, encadeou-se uma nova economia psíquica, como aponta Melman[4], em que os limites acabam rompidos em nome da satisfação de qualquer pretensão.
3 – Sem se defender o retorno ao dito paraíso neurótico, cabe se aproximar deste acontecimento, sem prejuízo de reflexões mais amplas dos maus-tratos[5]. No Brasil, especialmente pela constatação de que grande parte da geração atual de adolescentes não encontrou a transmissão da Lei, percebe-se que a função paterna restou desterrada, aniquilada, foracluída ou desmentida. Numa sociedade marginal, de regra, sem meios de consumir os objetos apontados pela mídia, cujo papel é importante na sideração do possível gozo escópico e imaginariamente pleno, surgem alternativas mais reais, até porque acolhida a “Nova Economia Psíquica”[6], qualquer demanda parece ser legítima socialmente.
4 – Assim é que, neste contexto, sem castração e, pois, sem Lei, o objeto sexual tem assumido patamares enormes. Os irmãos que, de regra, no Brasil, dormem no mesmo quarto ou em cômodos próximos, muitos junto com os pais, acrescida da curiosidade adolescente, excepcionada pela latência, acabam se tornando, na ausência de limites, no objeto que se toma, muitas vezes pela força. Em grande parte dos casos que atuei, inexiste a dimensão do interdito, mas tão-somente da compulsão pela satisfação, contando, em alguns casos, inclusive, com a conivência paterna, quando não compartilhada, ou seja, toda a família se entrega à satisfação do objeto sexual, sem a dimensão do lugar ocupado por eles, cada um, no antigo romance familiar (Freud): relações entre todos os membros.
5 – Para além do limite, lugar no qual a Justiça acaba se postando, deve-se apontar para o Real. A questão é que os sujeitos, de regra, recusam qualquer pretensão desta ordem, pois é "normal" para eles. Sem Lei não há pecado, lembra São Paulo, nas mãos de Lacan. Como fala Melman é o triunfo do hedonismo coletivo sobre o sintoma, no mais-de-gozar socializado, de uma infância generalizada, cujos efeitos se fazem ver no dia-a-dia dos Tribunais. Para estes, a dimensão da honra e da dignidade se perdeu e, assim, resta pouca coisa para a Justiça a não ser lhes colocar diante disto e indagar o que querem? Sabendo-se, todavia, de antemão, que a resposta social não só autoriza como determina o gozo sem limites em qualquer objeto, inclusive familiar. O consumo de objetos que, por básico, não satisfaz, ainda ganha o empurrão neoliberal da perda da função paterna estatal.
6 – Lidar com este traço perverso é o momento que nos arrosta. Resta-nos, assim, apontar que existe um impossível a se gozar, sob pena de morrermos endogamicamente todos. Mas para que isto ocorra, de fato, reconheçamos, pouco podemos fazer eticamente, sem demanda, salvo ao preço de ocuparmos o lugar do cajado, como diria Lacan. O limite do Estado é a resposta a se dar, claro, percebendo-se, todavia, que a estrutura apresentada encontra-se, de regra, desprovida do interdito simbólico do Nome-do-Pai. Neste mundo sem limites, sem gravidade (Melman), cabe indagar nosso desejo de continuar, e encontrarmos um caminho singular pelo Direito, o qual se tornou instrumento da satisfação perversa do objeto. Não para tornar o homem mais feliz, sob pena de se cair na armadilha do discurso social padrão, mas de resistir apontando o impossível. Este é o desafio: articular ética e singularmente os limites entre os lugares na família, num mundo sem limites (Lebrun).
[1] Alexandre Morais da Rosa. Doutor (UFPR). Mestre (UFSC). Professor do Programa de Pós-graduação da UNIVALI (SC). Juiz de Direito Titular da Vara da Infância e Juventude de Joinville (SC). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Filiado ao IBDFAM, IBCCRIM e BRASIL CEDHUC. Comunicação apresentada na II Rencontre Franco-Brésilienne de Psychanalyse et Droit: enfant en danger, enfant dangereux – acte et enjeux de responsabilité. Paris, 24-26 de outubro de 2005. E-mail: alexandremoraisdarosa@gmail.com
[2] HURSTEL, Françoise. La déchirure paternelle. Paris: Presses Universitaires de France, 1996.
[3] BARROS, Fernanda Otoni de. Do direito ao pai. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
[4] MELMAN, Charles. L’homme sans gravité: jouirà tout prix. Paris: Donoël, 2002
[5] PETITOT, Françoise. On bat un enfant: à propos de la maltraitance. In: LEBRUN, Jean-Pierre. Les désarrois nouveaux du sujet: prolongements théorico-cliniques au monde sans limite. Tolouse: Érès, 2004, p. 169-182.
[6] LEBRUN, Jean-Pierre. Un monde sans limite: essai pour une clinique psychanalytique du social. Tolouse: Érès, 1997.
1 – Estas notas se referem à situação vivenciada no contexto das Varas da Infância e Juventude no Brasil, especificamente no tocante aos atos sexuais violentos entre familiares. Representa uma leitura parcial da situação social, num diálogo possível entre o direito e a psicanálise de matriz lacaniana.
2 – Cada vez mais tem-se verificado, no Brasil, a ocorrência de violência sexual contra crianças e adolescentes. Para além das estatísticas, este dado aponta para algo de sintomático, a saber, a recorrência de casos de relações sexuais entre irmãos. Sabe-se que do Declínio da Função paterna, indicado por Lacan no século passado e demonstrado, dentre outros, por Françoise Hurstel[2], na França e Fernanda Otoni de Barros[3], no Brasil, encadeou-se uma nova economia psíquica, como aponta Melman[4], em que os limites acabam rompidos em nome da satisfação de qualquer pretensão.
3 – Sem se defender o retorno ao dito paraíso neurótico, cabe se aproximar deste acontecimento, sem prejuízo de reflexões mais amplas dos maus-tratos[5]. No Brasil, especialmente pela constatação de que grande parte da geração atual de adolescentes não encontrou a transmissão da Lei, percebe-se que a função paterna restou desterrada, aniquilada, foracluída ou desmentida. Numa sociedade marginal, de regra, sem meios de consumir os objetos apontados pela mídia, cujo papel é importante na sideração do possível gozo escópico e imaginariamente pleno, surgem alternativas mais reais, até porque acolhida a “Nova Economia Psíquica”[6], qualquer demanda parece ser legítima socialmente.
4 – Assim é que, neste contexto, sem castração e, pois, sem Lei, o objeto sexual tem assumido patamares enormes. Os irmãos que, de regra, no Brasil, dormem no mesmo quarto ou em cômodos próximos, muitos junto com os pais, acrescida da curiosidade adolescente, excepcionada pela latência, acabam se tornando, na ausência de limites, no objeto que se toma, muitas vezes pela força. Em grande parte dos casos que atuei, inexiste a dimensão do interdito, mas tão-somente da compulsão pela satisfação, contando, em alguns casos, inclusive, com a conivência paterna, quando não compartilhada, ou seja, toda a família se entrega à satisfação do objeto sexual, sem a dimensão do lugar ocupado por eles, cada um, no antigo romance familiar (Freud): relações entre todos os membros.
5 – Para além do limite, lugar no qual a Justiça acaba se postando, deve-se apontar para o Real. A questão é que os sujeitos, de regra, recusam qualquer pretensão desta ordem, pois é "normal" para eles. Sem Lei não há pecado, lembra São Paulo, nas mãos de Lacan. Como fala Melman é o triunfo do hedonismo coletivo sobre o sintoma, no mais-de-gozar socializado, de uma infância generalizada, cujos efeitos se fazem ver no dia-a-dia dos Tribunais. Para estes, a dimensão da honra e da dignidade se perdeu e, assim, resta pouca coisa para a Justiça a não ser lhes colocar diante disto e indagar o que querem? Sabendo-se, todavia, de antemão, que a resposta social não só autoriza como determina o gozo sem limites em qualquer objeto, inclusive familiar. O consumo de objetos que, por básico, não satisfaz, ainda ganha o empurrão neoliberal da perda da função paterna estatal.
6 – Lidar com este traço perverso é o momento que nos arrosta. Resta-nos, assim, apontar que existe um impossível a se gozar, sob pena de morrermos endogamicamente todos. Mas para que isto ocorra, de fato, reconheçamos, pouco podemos fazer eticamente, sem demanda, salvo ao preço de ocuparmos o lugar do cajado, como diria Lacan. O limite do Estado é a resposta a se dar, claro, percebendo-se, todavia, que a estrutura apresentada encontra-se, de regra, desprovida do interdito simbólico do Nome-do-Pai. Neste mundo sem limites, sem gravidade (Melman), cabe indagar nosso desejo de continuar, e encontrarmos um caminho singular pelo Direito, o qual se tornou instrumento da satisfação perversa do objeto. Não para tornar o homem mais feliz, sob pena de se cair na armadilha do discurso social padrão, mas de resistir apontando o impossível. Este é o desafio: articular ética e singularmente os limites entre os lugares na família, num mundo sem limites (Lebrun).
[1] Alexandre Morais da Rosa. Doutor (UFPR). Mestre (UFSC). Professor do Programa de Pós-graduação da UNIVALI (SC). Juiz de Direito Titular da Vara da Infância e Juventude de Joinville (SC). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Filiado ao IBDFAM, IBCCRIM e BRASIL CEDHUC. Comunicação apresentada na II Rencontre Franco-Brésilienne de Psychanalyse et Droit: enfant en danger, enfant dangereux – acte et enjeux de responsabilité. Paris, 24-26 de outubro de 2005. E-mail: alexandremoraisdarosa@gmail.com
[2] HURSTEL, Françoise. La déchirure paternelle. Paris: Presses Universitaires de France, 1996.
[3] BARROS, Fernanda Otoni de. Do direito ao pai. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
[4] MELMAN, Charles. L’homme sans gravité: jouirà tout prix. Paris: Donoël, 2002
[5] PETITOT, Françoise. On bat un enfant: à propos de la maltraitance. In: LEBRUN, Jean-Pierre. Les désarrois nouveaux du sujet: prolongements théorico-cliniques au monde sans limite. Tolouse: Érès, 2004, p. 169-182.
[6] LEBRUN, Jean-Pierre. Un monde sans limite: essai pour une clinique psychanalytique du social. Tolouse: Érès, 1997.
Bem complexo, nao consigo dar minha opiniao. Mas o filme brasileiro A Casa de Alice de Chico Teixeira lembra muito o que li aqui no blog. Caso entre irmaos, a questao do gozo e do bem material numa familia mais humilde! Enfim, ele mostra de forma bem interessante os conflitos existentes numa familia classe media baixa, vale a pena conferir.
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