COMO ERA DE SE
ESPERAR: PREVALECEU A IGNORÂNCIA, A HIPOCRISIA E O DIREITO PENAL MEDIEVAL [1]
“Talvez o caminho
seja mais árduo .
A fantasia é sempre
mais fácil
e mais cômoda .
Com certeza
é mais simples
para os pais
de um menino
drogado culpar
o fantasma do traficante, que
supostamente induziu seu filho ao vício , do que perceber e tratar dos conflitos familiares
latentes que ,
mais provavelmente, motivaram o vício . Como , certamente , é mais
simples para
a sociedade permitir a
desapropriação do conflito e transferi-lo
para o Estado ,
esperando a enganosamente salvadora intervenção do sistema
penal .”[2]
Em
reportagem assinada pelo jornalista Filipe Coutinho, correspondente do Jornal A
Folha de São Paulo em Brasília, na edição do dia 29 de janeiro de 2014,
noticiou-se que um
réu foi absolvido (por tráfico!) após um Juiz de Brasília considerar a maconha
uma droga "recreativa" e que não poderia estar na lista de
substâncias proibidas, utilizada como referência na Lei de Drogas. Segundo a
matéria jornalística, a decisão, do Juiz de Direito, Dr. Frederico Ernesto
Cardoso Maciel, da 4ª. Vara de Entorpecentes de Brasília (logo, logo, vai ser
removido, digo eu[3]), foi tomada em
outubro e o Ministério Público recorreu (óbvio! – afinal de contas, incumbi-lhe
a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis – art. art. 127, CF/88). Na sentença, o juiz compara
o uso da maconha com o cigarro e álcool (o que é foi um erro gravíssimo, pois o
cigarro e o álcool, comprovadamente, são mais lesivos à saúde do homem), para
concluir que há uma "cultura atrasada" no Brasil. Escreveu o
Magistrado: “soa incoerente o fato de
outras substâncias entorpecentes, como o álcool e o tabaco, serem não só
permitidas e vendidas, gerando milhões de lucro para os empresários dos ramos,
mas consumidas e adoradas pela população, o que demonstra também que a
proibição de outras substâncias entorpecentes recreativas, como o THC, são
fruto de uma cultura atrasada e de política equivocada e violam o princípio da
igualdade, restringindo o direito de uma grande parte da população de utilizar
outras substâncias.” (Aqui, certíssima a sua sentença).
Ele
cita vários exemplos que comprovariam o uso da maconha como droga recreativa e
medicinal, além do baixo potencial nocivo. A sentença exemplifica os casos do
Uruguai, Califórnia e até a posição do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
(faltou citar Bill Clinton, Jimmy Carter e outros ex-chefes de Estado como
Colômbia, México e Suíça, que mudaram de ideia sobre o assunto – conferir o
documentário Quebrando o Tabu – Um Filme em Busca de Soluções para o Fracasso
da Guerra às Drogas (direção de Fernando Grostein Andrade), de cuja sinopse
lê-se: “Há quarenta anos os Estados
Unidos levaram o mundo a declarar guerra às drogas, numa cruzada por um mundo
livre de drogas. Mas, os danos causados pelas drogas nas pessoas e na sociedade
só cresceram. Abusos, informações equivocadas, epidemias, violência e o
fortalecimento de redes criminosas são os resultados da guerra perdida numa
escala global.
O
Juiz sentenciante entendeu que não houve justificativa para a inclusão do THC,
substância da maconha, na lista proibida, pois como essa lista restringe o
direito das pessoas usarem substâncias, essa inclusão deveria ser justificada. Segundo
ele, “a portaria 344/98, indubitavelmente
um ato administrativo que restringe direitos, carece de qualquer motivação por
parte do Estado e não justifica os motivos pelos quais incluem a restrição de
uso e comércio de várias substâncias, em especial algumas contidas na lista F,
como o THC, o que, de plano, demonstra a ilegalidade do ato administrativo.”
Dias depois, como era de se esperar
aliás, a 3ª. Turma Criminal do Tribunal
de Justiça do Distrito Federal, à unanimidade, reformou a decisão do Juiz da 4ª
Vara de Entorpecentes, ora citada. (Processo nº. 2013 01 1 076604-6 - Fonte:
JusBrasil).
Algo surpreendente na decisão do
Tribunal de Justiça do Distrito Federal? Óbvio que não, muitíssimo pelo
contrário.
Desde
a promulgação da nova Lei de Drogas, entendemos que a posse de droga (e não
somente a maconha) para uso próprio deixou de ser crime e foi, portanto,
descriminalizada, em razão do que dispõe o art. 1º. da Lei de Introdução ao
Código Penal. Ocorreu uma abolitio
criminis.
A
propósito, Vera Malaguti Batista, afirma que “as prisões superlotadas e o aumento exponencial das populações
carcerárias só atestam o poder infinito do mercado e o papel que a política
criminal de drogas, capitaneada pelos EUA, desempenha no processo de
criminalização global dos pobres.” (Difíceis Ganhos Fáceis, 2ª. ed., Rio de
Janeiro, 2003, REVAN, p. 11).
Com efeito, os conceitos
de crime e contravenção
são dados
pela Lei
de Introdução ao Código
Penal que
define crime como
sendo “a infração
penal a que
a lei comina pena
de reclusão ou
de detenção , quer
isoladamente, quer alternativa
ou cumulativamente com
a pena de multa ;
contravenção , a infração
penal a que
a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa , ou
ambas, alternativa ou
cumulativamente.” (art. 1o. do Decreto-Lei
n. 3.914/41).
Como
se sabe, há dois critérios
utilizados pela doutrina
e pelo Direito
Positivo para
distinguir o crime
da contravenção : critérios
substanciais (que ,
por sua
vez , subdividem-se em
conceituais, teleológicos e éticos ) e formais , como o
nosso e o Código Francês.
O
Código Penal
da Suíça , no art. 9º.. disciplina igualmente :
“sont réputées crimes
les infractions passibles de la réclusion. Sont réputées délits les infractions
passibles de l´emprisonnement comme peine la plus grave .”
Em
França a classificação é tripartida: crimes ,
delitos e contravenções (art. 1º.).
Evidentemente que mesmo
os critérios formais
“pressupõem naturalmente
atrás deles critérios
substanciais de avaliação a que o legislador
tenha atendido para efeitos
de ameaçar uma certa
infracção com esta ou
aquela pena ”, como
anota o mestre português
Eduardo Correia (Direito Criminal,
Coimbra: Almedina, 1971, p. 214).
Estas
definições , por
se encontrarem na Lei de Introdução ao Código
Penal , evidentemente
regem e são válidas para
todo o sistema
jurídico –penal
brasileiro , ou
seja, do ponto de vista
do nosso Direito
Positivo quando
se quer saber
o que seja crime
ou contravenção ,
deve-se ler o disposto
no art. 1º. da Lei de Introdução ao Código
Penal .
Nelson
Hungria já se perguntava e ele próprio respondia: “Como se pode, então ,
identificar o crime
ou a contravenção ,
quando se trate de ilícito
penal encontradiço
em legislação
esparsa , isto
é, não contemplado no Código Penal (reservado aos crimes ) ou
na Lei das Contravenções
Penais ? O critério
prático adotado pelo
legislador brasileiro
é o da “distinctio delictorum ex poena”
(segundo o sistema
dos direitos francês
e italiano): a reclusão
e a detenção
são as penas
privativas de liberdade correspondentes ao crime ,
e a prisão simples
a correspondente à contravenção ,
enquanto a pena
de multa
não é jamais
cominada isoladamente ao crime.” (Comentários ao Código Penal ,
Vol. I, Tomo II, Rio
de Janeiro : Forense ,
4ª ed., p. 39).
Por sua vez ,
Tourinho Filho afirma: “Não cremos, data
venia, que o art. 1º. da Lei de Introdução
ao Código Penal
seja uma lex specialis. Trata-se, no
nosso entendimento ,
de regra elucidativa
sobre o critério
adotado pelo sistema
jurídico brasileiro
e que tem sido preferido pelas mais
avançadas legislações.” (Processo
Penal, Vol. 4, São Paulo: Saraiva , 20ª. ed., p.p. 212-213).
Manoel Carlos da Costa Leite também trilha
na mesma linha ,
afirmando: “No Direito
brasileiro , as penas
cominadas separam as duas espécies de infração . Pena de reclusão ou detenção : crime .
Pena de prisão
simples ou
de multa ou
ambas cumulativamente: contravenção.”
(Manual das Contravenções Penais ,
São Paulo: Saraiva ,
1962, p. 03).
Eis outro ensinamento
doutrinário : “Como é sabido , o Brasil adotou o sistema
dicotômico de distinção
das infrações penais ,
ou seja, dividem-se elas
em crimes
e contravenções penais .
No Direito pátrio
o método diferenciador das duas categorias de infrações
é o normativo e não o ontológico , valendo dizer , não se questiona a essência
da infração ou
a quantidade da sanção
cominada, mas sim
a espécie de punição .”
(Eduardo Reale Ferrari e Christiano
Jorge Santos , “As Infrações
Penais Previstas na Lei
Pelé”, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim, n. 109, dezembro/2001).
Comentando
sobre a teoria
do fato jurídico ,
o Professor Marco s Bernardes de Mello, assevera que a “distinção entre crime e contravenção penal ,
espécies do ilícito
criminal, é valorativa, em razão da importância
e gravidade do fato
delituoso. Os fatos ilícitos
de maior relevância
são classificados
como crimes ,
reservando-se as contravenções para os casos menos graves . Em decorrência
disso, as penas mais
enérgicas (reclusão e detenção ) são
imputadas aos crimes , enquanto as mais
leves (prisão
simples e multa )
são atribuídas às contravenções.” (Teoria
do Fato Jurídico -Plano da Existência ), São
Paulo: Saraiva , 10ª. ed., 2000, p. 222).
Desgraçadamente
o Supremo Tribunal Federal, no entanto, decidiu contrariamente, entendendo ter
havido apenas uma despenalização e não descriminalização: “PRIMEIRA TURMA -QUEST. ORD. EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO
430.105-9 RIO DE JANEIRO RELATOR: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE. V O T O: (...) O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE -
(Relator): Parte da doutrina tem sustentado que o art. 28 da L. 11.343/06
aboliu o caráter criminoso da conduta anteriormente incriminada no art. 16 da
L. 6.368/76, consistente em "adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso
próprio, substância entorpecente ou que determine a dependência física ou
psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar". Dispõe o art. 28 da L. 11.343/06, verbis: (...) A controvérsia foi bem exposta em artigo do
Professores Luiz Flávio Gomes e Rogério Cunha Sanches (GOMES, Luiz Flávio;
SANCHES, Rogério Cunha. Posse de drogas para consumo pessoal: crime, infração
penal "sui generis" ou infração administrativa? Disponível em:
http://www.lfg.com.br. 12 dez. 2006), do qual extrato, verbis: "Continua
acesa a polêmica sobre a natureza jurídica do art. 28 da Lei 11.343/2006 (nova
lei de drogas), que prevê tão-somente penas alternativas para o agente que tem
a posse de drogas para consumo pessoal. A questão debatida é a seguinte: nesse
dispositivo teria o legislador contemplado um crime, uma infração penal sui
generis ou uma infração administrativa? A celeuma ainda não chegou a seu final.
Os argumentos no sentido de que o art. 28 contempla um crime são, basicamente,
os seguintes: a) ele está inserido no Capítulo III, do Título III, intitulado
"Dos crimes e das penas"; b) o art. 28, parágrafo 4°, fala em
reincidência (nos moldes do art. 63 do CP e 7° da LCP e é reincidente aquele
que, depois de condenado por crime, pratica nova infração penal); c) o art. 30
da Lei 11.343/06 regulamenta a prescrição da posse de droga para consumo
pessoal. Apenas os crimes (e contravenções penais) prescreveriam; d) o art. 28
deve ser processado e julgado nos termos do procedimento sumaríssimo da lei dos
juizados, próprio para crimes de menor potencial ofensivo; e) cuida-se de crime
com astreintes (multa coativa, nos moldes do art. 461 do CPC) para o caso de
descumprimento das medidas impostas; f) a CF de 88 prevê, no seu art. 5º, inc.
XLVI, penas outras que não a de reclusão e detenção, as quais podem ser
substitutivas ou principais (esse é o caso do art. 28). Para essa primeira
corrente não teria havido descriminalização, sim, somente uma despenalização
moderada. Para nós, ao contrário, houve descriminalização formal (acabou o
caráter criminoso do fato) e, ao mesmo tempo, despenalização (evitou-se a pena
de prisão para o usuário de droga). O fato (posse de droga para consumo
pessoal) deixou de ser crime (formalmente) porque já não é punido com reclusão
ou detenção (art. 1º da LICP). Tampouco é uma infração administrativa (porque
as sanções cominadas devem ser aplicadas pelo juiz dos juizados criminais). Se
não se trata de um crime nem de uma contravenção penal (mesmo porque não há
cominação de qualquer pena de prisão), se não se pode admitir tampouco uma
infração administrativa, só resta concluir que estamos diante de infração penal
sui generis. Essa é a nossa
posição, que se encontra ancorada nos seguintes argumentos: a) a etiqueta dada
ao Capítulo III, do Título III, da Lei 11.343/2006 ("Dos crimes e das
penas") não confere, por si só, a natureza de crime (para o art. 28) porque
o legislador, sem nenhum apreço ao rigor técnico, já em outras oportunidades
chamou (e continua chamando) de crime aquilo que, na verdade, é mera infração
político-administrativa (Lei 1.079/1950, v.g., que cuida dos "crimes de
responsabilidade", que não são crimes). A interpretação literal, isolada
do sistema, acaba sendo sempre reducionista e insuficiente; na Lei 10.409/2002
o legislador falava em "mandato" expedido pelo juiz (quando se sabe
que é mandado); como se vê, não podemos confiar (sempre) na intelectualidade ou
mesmo cientificidade do legislador brasileiro, que seguramente não se destaca
pelo rigor técnico; b) a reincidência de que fala o §4º do art. 28 é claramente
a popular ou não técnica e só tem o efeito de aumentar de cinco para dez meses
o tempo de cumprimento das medidas contempladas no art. 28; se o mais
(contravenção + crime) não gera a reincidência técnica no Brasil, seria
paradoxal admiti-la em relação ao menos (infração penal sui generis + crime ou + contravenção); c) hoje é sabido que a
prescrição não é mais apanágio dos crimes (e das contravenções), sendo também
aplicável inclusive aos atos infracionais (como tem decidido, copiosamente, o
STJ); aliás, também as infrações administrativas e até mesmo os ilícitos civis
estão sujeitos à prescrição. Conclusão: o instituto da prescrição é válido para
todas as infrações (penais e não penais). Ela não é típica só dos delitos; d) a
lei dos juizados (Lei 9.099/1995) cuida das infrações de menor potencial
ofensivo que compreendem as contravenções penais e todos os delitos punidos até
dois anos; o legislador podia e pode adotar em relação a outras infrações (como
a do art. 28) o mesmo procedimento dos juizados; aliás, o Estatuto do Idoso já
tinha feito isso; e) o art. 48, parágrafo 2°, determina que o usuário seja
prioritariamente levado ao juiz (e não ao Delegado), dando clara demonstração
de que não se trata de "criminoso", a exemplo do que já ocorre com os
autores de atos infracionais; f) a lei não prevê medida privativa da liberdade
para fazer com que o usuário cumpra as medidas impostas (não há conversão das
penas alternativas em reclusão ou detenção ou mesmo em prisão simples); g)
pode-se até ver a admoestação e a multa (do § 6º do art. 28) como astreintes
(multa coativa, nos moldes do art. 461 do CPC) para o caso de descumprimento
das medidas impostas; isso, entretanto, não desnatura a natureza jurídica da
infração prevista no art. 28, que é sui
generis; h) o fato de a CF de 88 prever, em seu art. 5º, inc. XLVI,
penas outras que não a de reclusão e detenção, as quais podem ser substitutivas
ou principais (esse é o caso do art. 28) não conflita, ao contrário, reforça
nossa tese de que o art. 28 é uma infração penal sui generis exatamente porque conta com penas alternativas
distintas das de reclusão, detenção ou prisão simples. A todos os argumentos
lembrados cabe ainda agregar um último: conceber o art. 28 como
"crime" significa qualificar o possuidor de droga para consumo pessoal
como "criminoso". Tudo que a nova lei não quer (em relação ao
usuário) é precisamente isso. Pensar o contrário retrataria um grave retrocesso
punitivista (ideologicamente incompatível com o novo texto legal). Em
conclusão: a infração contemplada no art. 28 da Lei 11.343/2006 é penal e sui
generis. Ao lado do crime e das contravenções agora temos que também admitir a
existência de uma infração penal sui generis." II A tese de que o fato
passou a constituir infração penal sui
generis implica sérias conseqüências, que estão longe de se restringirem
à esfera puramente acadêmica. De imediato, conclui-se que, se a conduta não é
crime nem contravenção, também não constitui ato infracional, quando menor de
idade o agente, precisamente porque, segundo o art. 103 do Estatuto da Criança
e do Adolescente (L. 8.069/90), considera-se "ato infracional" apenas
"a conduta descrita como crime ou contravenção penal". De outro lado,
como os menores de 18 anos estão sujeitos "às normas da legislação
especial" (CF/88, art. 2281; e C.Penal, art. 27(2) -
vale dizer, do Estatuto da Criança e do Adolescente (L. 8.069/90, art. 104(3)
-, sequer caberia cogitar da aplicação, quanto a eles, da L. 11.343/06.
Pressuposto o acerto da tese, portanto, poderia uma criança - diversamente de um
maior de 18 anos -, por exemplo, cultivar pequena quantidade de droga para
consumo pessoal, sem que isso configurasse infração alguma. Isso para mencionar
apenas uma das inúmeras conseqüências práticas, às quais se aliariam a
tormentosa tarefa de definir qual seria o regime jurídico da referida infração
penal sui generis. III Estou
convencido, contudo, de que a conduta antes descrita no art. 16 da L. 6.368/76
continua sendo crime sob a lei nova. Afasto, inicialmente, o fundamento de que
o art. 1º do DL 3.914/41 (Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei de
Contravenções Penais) seria óbice a que a L. 11.343/06 criasse crime sem a
imposição de pena de reclusão ou detenção. A norma contida no art. 1º do LICP -
que, por cuidar de matéria penal, foi recebida pela Constituição de 1988 como
de legislação ordinária(4) - se limita a estabelecer um critério que
permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção.
Nada impede, contudo, que lei ordinária superveniente adote outros critérios
gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime - como o fez o art.
28 da L. 11.343/06 - pena diversa da "privação ou restrição da
liberdade", a qual constitui somente uma das opções constitucionais
passíveis de serem adotadas pela "lei" (CF/88, art. 5º, XLVI e
XLVII). IV De outro lado, seria presumir o excepcional se a interpretação da L.
11.343/06 partisse de um pressuposto desapreço do legislador pelo "rigor
técnico", que o teria levado - inadvertidamente - a incluir as infrações
relativas ao usuário em um capítulo denominado "Dos Crimes e das
Penas" (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30). Leio, no
ponto, o trecho do relatório apresentado pelo Deputado Paulo Pimenta, Relator
do Projeto na Câmara dos Deputados (PL 7.134/02 - oriundo do Senado), verbis (www.camara.gov.br):
"(...) Reservamos o Título III para tratar exclusivamente das atividades
de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e
dependentes de drogas. Nele incluímos toda a matéria referente a usuários e
dependentes, optando, inclusive, por trazer para este título o crime do
usuário, separando-o dos demais delitos previstos na lei, os quais se referem à
produção não autorizada e ao tráfico de drogas - Título IV. (...) Com relação
ao crime de uso de drogas, a grande virtude da proposta é a eliminação da
possibilidade de prisão para o usuário e dependente. Conforme vem sendo
cientificamente apontado, a prisão dos usuários e dependentes não traz
benefícios à sociedade, pois, por um lado, os impede de receber a atenção
necessária, inclusive com tratamento eficaz e, por outro, faz com que passem a
conviver com agentes de crimes muito mais graves. Ressalvamos que não estamos,
de forma alguma, descriminalizando a conduta do usuário - o Brasil é,
inclusive, signatário de convenções internacionais que proíbem a eliminação
desse delito. O que fazemos é apenas modificar os tipos de penas a serem
aplicadas ao usuário, excluindo a privação da liberdade, como pena principal (...)."
Não se trata de tomar a referida passagem como reveladora das reais intenções
do legislador, até porque, mesmo que fosse possível desvendá-las - advertia com
precisão o saudoso Ministro Carlos Maximiliano -, não seriam elas aptas a
vincular o sentido e alcance da norma posta. Cuida-se, apenas, de não tomar
como premissa a existência de mero equívoco na colocação das condutas num
capítulo chamado "Dos Crimes e das Penas" e, a partir daí, analisar
se, na Lei, tal como posta, outros elementos reforçam a tese de que o fato
continua sendo crime. De minha parte, estou convencido de que, na verdade, o
que ocorreu foi uma despenalização, entendida como exclusão, para o tipo, das
penas privativas de liberdade. O uso, por exemplo, da expressão
"reincidência", não parece ter um sentido "popular",
especialmente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em
contrário na L. 11.343/06 afastaria a incidência da regra geral do C.Penal
(C.Penal, art. 12: "As regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados
por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso"). Soma-se a tudo a
previsão, como regra geral, do rito processual estabelecido para os crimes de
menor potencial ofensivo(5), possibilitando até mesmo a proposta de
aplicação imediata de pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§1º
e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do 107 e seguintes
do C.Penal (L. 11.343/06, art. 30(6). Assim, malgrado os termos da
Lei não sejam inequívocos - o que justifica a polêmica instaurada desde a sua
edição -, não vejo como reconhecer que os fatos antes disciplinados no art. 16
da L. 6.368/76 deixaram de ser crimes. O que houve, repita-se, foi uma
despenalização, cujo traço marcante foi o rompimento - antes existente apenas com
relação às pessoas jurídicas e, ainda assim, por uma impossibilidade material
de execução (CF/88, art. 225, §3º(7); e L. 9.605/98, arts. 3º;
21/24(8) - da tradição da imposição de penas privativas de liberdade
como sanção principal ou substitutiva de toda infração penal. Esse o quadro,
resolvo a questão de ordem no sentido de que a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (C.Penal, art. 107,
III). V De outro lado, à vista do art. 30 da L. 11.343/06, que fixou em 2 anos
o prazo de prescrição da pretensão punitiva, reconheço, desde logo, a extinção
da punibilidade dos fatos. Os fatos ocorreram há mais de 2 anos (f. 78v e ss.),
que se exauriram sem qualquer causa interruptiva da prescrição. Perdeu objeto,
pois, o recurso extraordinário que, por isso, julgo prejudicado: é o meu voto. Notas de rodapé [1] CF/88: "Art.
228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas
da legislação especial". [2] C.Penal: "Art. 27. Os menores de 18
(dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas
estabelecidas na legislação especial". [3] L. 8.069/90: "Art. 104.
São penalmente inimputáveis os menores de 18 (dezoito) anos, sujeitos às
medidas previstas nesta Lei". [4] Quanto se trata de incompatibilidade
formal da legislação infraconstitucional com a Constituição superveniente -
anota Luis Roberto Barroso (cf. BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e
Aplicação da Constituição. 6ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2004, pág. 83/85)-, o
"consenso doutrinário é amplo" no sentido da "subsistência
válida da norma que haja sido produzida em adequação com o processo vigente no
momento de sua elaboração". Nesse sentido decidiu o Plenário do Supremo
Tribunal Federal em pelo menos dois precedentes - relativos ao recebimento como
legislação ordinária das normas de conteúdo processual contidas em seu Regimento Interno
(cf. AO 32 -AgR, 30.08.90, Marco Aurélio,DJ 28.09.90; RE 212.455 -EDV-ED-AgR,
14.11.02, Marco Aurélio, DJ 11.04.03) -, não existe no Brasil "o instituto
da inconstitucionalidade formal superveniente". [5] L. 11.343: "Art.
48. O procedimento relativo aos processos por crimes definidos neste Título
rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as
disposições do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal. § 1º O
agente de qualquer das condutas previstas no art. 28 desta Lei, salvo se houver
concurso com os crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta Lei, será processado e julgado na
forma dos arts. 60 e seguintes da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, que
dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais. § 2º Tratando-se da conduta
prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o
autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta
deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo
circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias
necessários. § 3º Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas
no § 2º deste artigo serão tomadas de imediato pela autoridade policial, no
local em que se encontrar, vedada a detenção do agente. § 4º Concluídos os
procedimentos de que trata o § 2º deste artigo, o agente será submetido a exame
de corpo de delito, se o requerer ou se a autoridade de polícia judiciária
entender conveniente, e em seguida liberado. § 5º Para os fins do disposto no
art. 76 da Lei no 9.099, de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais
Criminais, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena
prevista no art. 28 desta Lei, a ser especificada na proposta." [6] L.
11.343/06: "Art. 30. Prescrevem em 2 (dois) anos a imposição e a execução
das penas, observado, no tocante à interrupção do prazo, o disposto nos arts.
107 e seguintes do Código Penal". [7] CF/88: "Art. 223. As condutas e
atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores,
pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,
independentemente da obrigação de reparar os danos causados". [8] L.
9.605/98: "Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas
administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em
que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou
contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua
entidade. Art. 21. As penas aplicáveis isolada, cumulativa ou alternativamente
às pessoas jurídicas, de acordo com o disposto no art. 3º, são: I - multa; II -
restritivas de direitos; III - prestação de serviços à comunidade."
"Art. 22. As penas restritivas de direitos da pessoa jurídica são: I -
suspensão parcial ou total de atividades; II - interdição temporária de
estabelecimento, obra ou atividade; III - proibição de contratar com o Poder
Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações. § 1º A suspensão
de atividades será aplicada quando estas não estiverem obedecendo às
disposições legais ou regulamentares, relativas à proteção do meio ambiente. §
2º A interdição será aplicada quando o estabelecimento, obra ou atividade
estiver funcionando sem a devida autorização, ou em desacordo com a concedida,
ou com violação de disposição legal ou regulamentar. § 3º A proibição de
contratar com o Poder Público e dele obter subsídios, subvenções ou doações não
poderá exceder o prazo de dez anos. Art. 23. A prestação de serviços à comunidade pela
pessoa jurídica consistirá em: I - custeio de programas e de projetos
ambientais; II - execução de obras de recuperação de áreas degradadas; III -
manutenção de espaços públicos; IV - contribuições a entidades ambientais ou
culturais públicas. Art. 24. A
pessoa jurídica constituída ou utilizada, preponderantemente, com o fim de
permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime definido nesta Lei terá
decretada sua liquidação forçada, seu patrimônio será considerado instrumento
do crime e como tal perdido em favor do Fundo Penitenciário Nacional."
Voto - sem revisão - do Ministro Carlos Britto À revisão de apartes dos
Senhores Ministros Sepúlveda Pertence (Presidente e Relator), Ricardo
Lewandowski e Marco Aurélio. VOTO: O SR. MINISTRO CARLOS BRITTO - Senhor
Presidente, também penso que esse art. 28 da Lei nº 11.343 é claro no sentido
da criminalização da conduta, até coerente com a inserção topográfica da
matéria. Afinal, o nome do título é: Dos Crimes e Das Penas. E esse art. 28 não
só descreve o crime, como comina a pena. O SR. MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE
(PRESIDENTE E RELATOR) - Manda estabelecer o processo dos crimes de menor
potencial ofensivo. O SR. MINISTRO CARLOS BRITTO - E quanto à distinção entre
descriminalização e despenalização está perfeita, porque Vossa Excelência reduz
a despenalização, dá um sentido restrito, apenas para afastar aquelas penas
restritivas de liberdade. O SR. MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE (PRESIDENTE E
RELATOR) - É o que se tem usado como forma de redução da pena privativa de
liberdade a ultima ratio. Isso é que a doutrina tem chamado, impropriamente
embora, de despenalização. O SR. MINISTRO CARLOS BRITTO - No mais, esse voto de
Vossa Excelência é verdadeiramente antológico, brilhante, de uma densidade de
raciocínio. O SR. MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI - Realmente a conduta é lesiva.
Há um certo componente de lesividade que atinge a sociedade e permite a
tipificação como crime. Não é uma conduta que diz respeito só à própria pessoa.
O SR. MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE (PRESIDENTE E RELATOR) - E ainda há esse
argumento de Direito Internacional acentuado pelo Deputado. O SR. MINISTRO
RICARDO LEWANDOWSKI - É o princípio da austeridade e da lesividade. O SR.
MINISTRO MARCO AURÉLIO - A que o Brasil se obrigou. O SR. MINISTRO SEPÚLVEDA
PERTENCE (PRESIDENTE E RELATOR) - Obrigou-se, seria uma ruptura da convenção. O
SR. MINISTRO CARLOS BRITTO - A descriminalização traria um efeito colateral
maligno, do ponto de vista social: estimularia o consumo e, por conseqüência, o
tráfico de drogas. Acompanho, com todo louvor, o voto de Vossa Excelência. Voto
do Ministro Marco Aurélio (sem revisão) À revisão de apartes do Senhor Ministro
Sepúlveda Pertence (Presidente e Relator). O SR. MINISTRO MARCO AURÉLIO -
Senhor Presidente, não bastasse o que se contém no artigo 16 da própria Lei nº
6.368, temos que o novo diploma legal, a Lei nº 11.343, cogita de pena. Mais do
que isso, como ressaltado por Vossa Excelência e frisado também pelo Ministro
Carlos Ayres Britto, a disciplina da matéria está em um capítulo revelador: Dos
Crimes e das Penas. E Vossa Excelência esgotou a matéria, apontando que o que
tivemos na espécie foi uma substituição da apenação primitiva da Lei nº 6.358
pelo que se contém no artigo 28 do novo diploma legal. Quanto à matéria,
deu-se, até mesmo, a revogação explícita da Lei nº 6.368, portanto, a
derrogação da Lei nº 6.368. Mas, para mim, suficiente é a premissa segundo a
qual não se encontra em diploma algum palavras inócuas, palavras sem o sentido
técnico, além do sentido vernacular. O SR. MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE
(PRESIDENTE E RELATOR) - Além de submetido ao processo dos crimes de menor
potencial ofensivo. O SR. MINISTRO MARCO AURÉLIO - Não bastasse a prestação de
serviços à comunidade, que também é uma pena utilizada na legislação comum. O
SR. MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE (PRESIDENTE E RALATOR) - E uma das penas
possíveis previstas na Constituição. O SR. MINISTRO MARCO AURÉLIO - Subscrevo o
voto bem fundamentado proferido por Vossa Excelência e concluo, tal como fez
Vossa Excelência, no sentido da incidência da prescrição.”
Na
esteira deste julgamento, também o Superior Tribunal de Justiça: A
controvérsia acerca da competência para o processamento e julgamento de feito
no qual o réu foi denunciado por porte de entorpecente para uso próprio foi
dirimida pela entrada em vigor da Lei n.º 11.343⁄06 que fixa, em seu art. 48, a competência do Juizado
Especial Criminal, nos termos dos arts. 60 e seguintes da Lei n.º 9.099⁄95.II.
Recurso provido, nos termos do voto do Relator."(REsp 882502⁄MG, 5ª
Turma, Rel. Ministro Gilson Dipp,
DJ de 05⁄02⁄2007).
Nada
obstante tais decisões, o certo é que em virtude
do bem jurídico
tutelado é que se mostra
“inadmissível a punição
da posse de drogas
para uso pessoal , seja pela
inafetação do bem
jurídico protegido
(a saúde pública ),
seja por sua
contrariedade com
um ordenamento jurídico
garantidor da não
intervenção do Direito
em condutas
que não
afetem a terceiros ”, como explica Maria Lúcia Karam, em
sua excelente
obra “De Crimes ,
Penas e Fantasias ”,
Rio de Janeiro :
LUAM, 1991. Karam complementa afirmando com absoluta propriedade que
a “aquisição ou posse de drogas
para uso pessoal , da mesma
forma que a
autolesão ou a tentativa
de suicídio , situa-se na esfera
de privacidade de cada
um , não
podendo o Direito nela intervir .”
(pp. 60 e 128). Muito menos o Direito Penal! É o que se chama em Direito Penal
de “Paternalismo Direto”, ou seja, “a
utilização de sanções penais para a criminalização da conduta de uma pessoa que
se auto lesiona ou que tenta se auto lesionar.(...) Roxin observa que comportamentos auto lesivos devem ser vistos como
parte da autodeterminação do ser humano e, consequentemente, não são objetos
adequados para sanções penais (...)” (Andrew von Hirsch, “Paternalismo
direto: autolesões devem ser punidas penalmente?”, São Paulo: Revista
Brasileira de Ciências Criminais, nº. 67 - 2007).
Salo
de Carvalho, com base em Timm de Souza, aduz interessante afirmação:” A incapacidade do humano de estar frente à
diversidade e a sua impossibilidade de realizar acontecimentos trágicos com
sujeitos que o desestabilizam talvez possam explicar a necessidade de
manutenção da lógica proibicionista com seus perversos efeitos”. (A
Política Criminal de Drogas no Brasil, São Paulo: Saraiva, 6ª. ed., 2013, p.
459).
Argumenta-se
que o uso de drogas poderia causar “consequências
negativas” e “atos de vitimização de
outras pessoas”, ou seja, “o uso de
drogas deveria ser proibido porque leva a outras consequências criminógenas a
que se seguem comportamentos classicamente lesivos, como formas graves de
furto, lesão corporal, vandalismo, etc.”
Como
contesta Andrew von Hirsch, se esta fosse uma justificativa séria para a
criminalização do uso de drogas, seríamos forçados a admitir “a responsabilidade dos consumidores de
drogas por decisões intermediárias. (...)”. A conduta, então, seria
criminalizada “porque provoca outros
atores (que não são controlados pelo agente original) a adotar comportamentos
que causam lesões ou perigos. Ao se imputar, em tais situações, a
responsabilidade penal ao agente original, ignora-se o princípio da responsabilidade
pessoal própria, já que ele não cometeu pessoalmente qualquer injusto e as consequências
lesivas são causadas por meio de atos errados de outros.” (ob. cit.).
Neste
sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu um condenado em primeira
instância por envolvimento com cocaína por entender que portar e consumir droga
não é crime. O autor da polêmica decisão, seguida por três desembargadores da
6ª Câmara, foi o Juiz José Henrique Rodrigues Torres, que considerou inconstitucional
o artigo 28 da lei 11.343/ 06. O julgamento da apelação foi em 31 de março de
2008 e o Ministério Público pode recorrer ao Supremo Tribunal Federal. "A criminalização primária do porte de
entorpecentes para uso próprio é de indisfarçável insustentabilidade
jurídico-penal", diz trecho da decisão, revelada ontem pelo jornal
"O Estado de S. Paulo". Para o Magistrado, essa criminalização é
inconstitucional porque o usuário de drogas ilícitas não coloca terceiros em
risco. "Assim, transformar aquele que
tem a droga apenas e tão-somente para uso próprio em agente causador de perigo
à incolumidade pública, como se fosse potencial traficante, implica frontal
violação do princípio da ofensividade." Ainda na visão do Juiz, as
drogas lícitas (como bebidas alcoólicas) também causam dependência física e
psíquica, mas, mesmo assim, têm tratamento diferente. Além disso, ninguém pode
ter sua intimidade violada, já que o uso de drogas é uma questão pessoal. A
discussão ocorreu no julgamento da apelação feita por Ronaldo Lopes, condenado
por tráfico de drogas. Lopes foi preso em 17 fevereiro de 2007 com três
papelotes de cocaína, com 7,7 gramas.
Vejamos,
mais uma vez, a inteligência de Maria Lúcia Karan: “Libertadas dos negativos efeitos
da criminalização, as drogas hoje etiquetadas de ilícitas, certamente se
mostrarão menos danosas. Libertados do proibicionismo, certamente, seremos mais
capazes não só de encontrar formas mais saudáveis de usá-las, como também de
regulamentar o seu uso”. (Proibições, Riscos, Danos e Enganos: As Drogas
Tornadas Ilícitas – Lumen Juris Editora, Rio de Janeiro, 2009, p. 65.).
Aliás,
na Argentina, dois
juízes federais de Buenos Aires absolveram um homem que havia sido processado
por ter uma plantação de maconha na varanda de seu apartamento na capital
argentina. Na decisão divulgada nesta
terça-feira, os juízes Eduardo Farah e Eduardo Freiler consideraram
inconstitucional que o réu (cuja identidade não foi revelada) fosse punido por
ter seis vasos com a planta Cannabis sativa para uso pessoal, concordando com o
argumento da defesa de que a plantação não atentava contra a "saúde
pública". Farah e Freiler entenderam, segundo a imprensa argentina, que
este cultivo não é crime porque o homem não planejava comercializar o produto e
atuava no "âmbito de sua privacidade". Os magistrados se basearam na
Constituição argentina para sustentar a defesa de "atos privados" que
"não afetam a terceiros". Em uma decisão anterior, outro juiz
federal, Sérgio Torres, havia processado o homem e sugerido que ele se
submetesse a um tratamento de reabilitação. Esse processo foi baseado em um
artigo do Código Penal argentino que proíbe o cultivo de plantas ou
armazenamento de sementes para produzir entorpecentes para consumo pessoal --e
que prevê penas de um mês a dois anos de prisão. O caso ainda pode agora levado
a instâncias superiores, como a Câmara de Cassação Penal ou a Suprema Corte de
Justiça, ou ser concluído, se não houver novas apelações. A decisão da Justiça
Federal de Buenos Aires ocorre três meses depois que o ministro da Justiça,
Aníbal Fernández, defendeu a descriminação do consumo de drogas e a atenção
médica aos usuários de substâncias químicas, durante uma reunião extraordinária
sobre o consumo de drogas e o narcotráfico organizada pelas Nações Unidas
(ONU), em Viena, na Áustria. Fonte: Folha On Line.
Posteriormente,
no julgamento da Causa n.º 9.080, realizado no dia 25 de agosto de 2009 (caso
Arriola e outros) a Suprema Corte de Justiça da Nação Argentina deu provimento
ao recurso extraordinário interposto contra decisão condenatória pelo delito de
posse de entorpecente para uso pessoal, tipificado no art. 14, § 2.º, da Lei
nº. 23.737/1989. Na decisão unânime, os Magistrados entenderam que a norma
penal era incompatível com o art. 19 da Constituição Argentina: “Las acciones privadas de los hombres que de
ningún modo ofendan al orden y a la moral pública, ni perjudiquen a un tercero,
están sólo reservadas a Dios, y exentas de la autoridad de los magistrados. Ningún
habitante de la Nación será obligado a hacer lo que no manda la ley, ni privado
de lo que ella no prohíbe.” A decisão, no entanto, descriminalizou a posse
de droga para uso pessoal apenas para os maiores de 16 anos. Não foi uma
decisão que legalizou a conduta, apenas a posse ou o porte de pequena
quantidade, para uso pessoal, está fora do âmbito de incidência do Direito
Penal. É bom lembrar que isto já ocorreu em outros países, inclusive do nosso
continente, como no México que, em agosto de 2009, descriminalizou a posse de
drogas para uso pessoal até o limite de quinhentos miligramas de cocaína ou de
cinco gramas de maconha. Também no Peru, Costa Rica e Uruguai. Na Colômbia
desde 1974 a Corte Suprema declarou a inconstitucionalidade da lei que punia criminalmente
o porte de droga para uso próprio.
Sei que não se conclui um texto
acadêmico com citações, mas eu nem sei as regras da ABNT (nem me interessam,
nem interessavam a Calmon de Passos). Portanto, aí vão:
“Na verdade a avalanche de pitos, reprimendas
e agressões só me estimulam a combatividade” (Caetano Veloso - Jornal A
Tarde, 13/10/2013, p. B9).
“Os idealistas são tratados como cupins nas
instituições: todos tentam matá-los, com veneno, mas eles não morrem, ao
contrário, se organizam, olham um para a cara do outro e dizem: vamos roer! Um
dia o todo
poderoso senta na sua cadeira e cai porque a pata da cadeira está
roída”. (Calmon de Passos - Congresso de Advogados, em 1992, em Porto
Alegre).
poderoso senta na sua cadeira e cai porque a pata da cadeira está
roída”. (Calmon de Passos - Congresso de Advogados, em 1992, em Porto
Alegre).
[1]
Rômulo de Andrade Moreira é
Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos do Ministério
Público do Estado da Bahia. Foi Assessor Especial
da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro
de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador
da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal
da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação
(Especialização em Direito Processual
Penal e Penal e Direito Público).
Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade
de Salamanca/Espanha (Direito Processual
Penal ). Especialista
em Processo pela Universidade
Salvador - UNIFACS (Curso então
coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos ). Membro da Association Internationale de Droit
Penal , da Associação
Brasileira de Professores
de Ciências Penais,
do Instituto Brasileiro
de Direito Processual e Membro fundador
do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função
de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por
quatro vezes , de bancas
examinadoras de concurso público
para ingresso
na carreira do Ministério
Público do Estado
da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm
(BA), Praetorium (MG) e IELF (SP). Autor das obras “Curso Temático de Direito
Processual Penal” e “Comentários à Lei Maria da Penha” (em coautoria com Issac
Guimarães), ambas editadas pela Editora Juruá, 2010 (Curitiba); “A
Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas
Cautelares” (2011), “Juizados Especiais Criminais – O Procedimento Sumaríssimo”
(2013) e “A Nova Lei de Organização Criminosa”, publicadas pela Editora
LexMagister, (Porto Alegre), além de
coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”
(Editora JusPodivm, 2008). Participante em várias obras coletivas. Palestrante
em diversos eventos realizados no Brasil.
[3] Notícias veiculadas pelos mais diversos meios de
comunicação dão conta que o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro
Joaquim Barbosa, teria sido, indiretamente, o responsável pela troca de Juízes
na Vara de Execuções Penais do Distrito Federal, ao pressionar o Presidente do
Tribunal de Justiça do Distrito Federal para fazê-lo, no caso dos condenados na
Ação Penal 470, o conhecido Mensalão. Esta acusação, acaso verdadeira, é das
mais graves que podem pesar sobre os ombros do Presidente do Supremo Tribunal Federal
e do Conselho Nacional de Justiça, pois não se pode admitir, em nenhuma
hipótese e sob nenhum argumento ou pretexto, que em um Estado Democrático de
Direito exclua-se a atuação de um Juiz de Direito devidamente competente,
substituindo-o por um outro, “devidamente encomendado”. Aliás, tais manobras
lembram os velhos coronéis da política brasileira que até há bem pouco tempo
determinavam a designação deste ou daquele Magistrado, para esta ou aquela
Comarca, especialmente quando se tratava de ano eleitoral. Aqui na Bahia, por
exemplo, era lugar comum este tipo de conduta que, a um só tempo, vulnera a
independência dos membros do Poder Judiciário e o Princípio do Juiz Natural.
Ora, exatamente para evitar tais intromissões indevidas é que existem regras rígidas
e claras para a determinação da competência penal que, evidentemente, não podem
ser mudadas após “o jogo começado”, ainda mais por pressão ilegítima vinda de
dentro do próprio Poder Judiciário. Como se disse, fere-se de morte o Princípio
do Juiz Natural , figura consagrada no art. 5º., XXXVII e LIII da Constituição , bem como nos arts.
8º. e 10º. da Declaração Universal
dos Direitos do Homem .
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