Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos

Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos
Alexandre Morais da Rosa

Kindle - Meu livro novo

O meu livro Jurisdição do Real x Controle Penal: Direito & Psicanálise, via Literatura foi publicado pela http://www.kindlebook.com.br/ na Amazon.
Não precisa ter o Kindle. Pode-se baixar o programa e ler o livro. CLIQUE AQUI

AGORA O LIVRO PODE SER COMPRADO NA LIVRARIA CULTURA - CLIQUE AQUI

Também pode ser comprado na LIVRARIA SARAIVA - CLIQUE AQUI

LIVROS LUMEN JURIS - CLIQUE AQUI

26/02/2009

Livro Marrafon


1. Quando Marco Aurélio Marrafon convidou-me para escrever este prefácio, fiquei por duas semanas atravessado com o significante, como se fosse um Pré-Fácil, de sair. Não foi. Muito porque neste ínterim, participei de sua banca de doutorado que, de uma certa forma, continua – e com muitos méritos –, o que venho pesquisando nos últimos 8 anos: a bricolage de significantes no campo da decisão judicial. Então, a coisa estava, por assim dizer, Nada-Fácil. Principalmente porque me sentia "usurpando" o lugar de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, orientador meu e dele, reconhecidamente por nós a referência teórica e do mundo vivido. Ele, Jacinto, sempre foi um captain. Evidentemente que neste caminho o inconsciente, de alguma forma, aparece... Isto, contudo, é papo para o meu psicanalista.
2. A tentativa de responder aos questionamentos formulados pelo estado da arte, no campo do Direito, esbarra justamente na antecedente assunção de uma imaginária "necessidade" de sentido totalitário. Isto porque, embora se negue no discurso consciente, a matriz religiosa influencia, e muito, a maneira pela qual a ciência foi construída na Modernidade. O pensamento se articulou em face de uma "causalidade" infinita, preenchida, para efeito lógico, por uma "Norma Fundamental", em Kelsen, "Regras de Reconhecimento", em Hart, ou, ainda, constrangimentos da "tradição", em Dworkin. Em todos, entretanto, com algumas modificações importantes, a estrutura é completa, coerente e única. Nem poderia ser diferente.
3. Com efeito, ao não aceitar a incoerência, incompletude e pluralidade normativa, o Direito articula um registro de fundamentação capaz de se acomodar, de maneira ingênua, claro, no discurso herdeiro da Modernidade. A simplificação conta, de um lado, com um modelo de sujeito "universal", dotado de razão, ponderador de suas ações e desprovido de "inconsciente"; por outro, demanda a construção de um arsenal de "métodos" capazes de dar a aparência de que não existem dificuldades na interpretação dos textos. Evidentemente que isto decorre, no não-dito, de uma pretensão ideológica, atualmente centrada no "mercado neoliberal" e sua "flexibilidade" angustiante.
4. Assim é que "segurança jurídica" e "justiça" sempre foram os significantes invocados para dar a falsa aparência, evidente, de que se pode chegar a construir, no reino dos homens, um espelho da perfeição divina. Para isto, entretanto, além de se acreditar em Deus, coisa da ordem da crença, resta a verificação de uma impossibilidade material. É que com o giro lingüístico é impossível se acreditar em conceitos firmes, definitivos, forjados pela "descoberta" da "natureza" das "coisas", justamente porque isto somente pode ocorrer numa "hermenêutica paranóica" em que todos são iguais e, portanto, alheios à realidade. A realidade não é mais percebida como um "dado", mas sim "construído" em face dos limites simbólicos do sujeito, enfim, de sua estrutura compartilhada também, com o meio.
5. A tensão entre o texto e o sentido resultante da norma esteve banhada pela cisão sujeito/objeto. De um lado o sujeito universal, capaz de obter a mesma resposta via o método adequado, por outro, um objeto provido de essência. O observador poderia, assim, pelo método, reconfortar-se com a verdade. A estrutura era metafísica e herdada da Modernidade. A superação do esquema sujeito-objeto procura aterrar esta distinção para os colocar num campo único: a linguagem. A extração da essência do texto desliza para o registro do Imaginário, contracenando com uma certa ausência de mediação Simbólica decorrente da (de)formação filosófica dos atores jurídicos. É impossível a existência de um método universal. Por isso manipula-se (este é o termo) o método conforme as necessidades prévias do sentido, a saber, os métodos servem de argumento manifesto do processo de compreensão latente, existente desde sempre, e rejeitado por uma tradição inautêntica do direito. Para alcançar alguma sofisticação no campo jurídico, como apontaram Lenio Streck e Ernildo Stein, as contribuições de Heidegger e Gadamer são fundamentais. Ao trazer a compreensão vinculada ao "ser-aí", a partir das noções de círculo hermenêutico e diferença ontológica, proporciona uma nova maneira de embate hermenêutico. Diz Streck: "Em outras palavras, antes de argumentar, o intérprete já compreendeu." Eis o sentido.
6. Com o descentramento do sujeito formulado com Freud, não mais dono absoluto da partida, porque há algo que não se sabe e não se quer saber, eccoa Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, a racionalidade encontra um limite do racionalizável. Por isto que Lacan dando uma nova versão ao "penso, logo existo" cartesiano, apontou que com o inconsciente o sujeito existia onde não pensava e pensava onde não existia. No mais-além está o inconsciente que é desejo, desejo do Outro. Daí que não existe mais saída ôntica, mas somente ética, colmatável fora do consciente, no registro do desejo, submetido ou não à Lei-do-Pai. Deste submetimento ou não, com suas implicações – neuróticos, psicóticos ou perversos – articulados em face do desejo do Outro, de vez, quebrou-se a epistemologia da Modernidade. Desprovidos de metalinguagem, sem verdades redentoras, estamos perdidos ou achados na linguagem, no registro do Simbólico, sem que se possa fixar, como muitos buscam, um significante originário, que não a falta. Este limite, se reconhecido, deixa os claudicantes atores jurídicos "sem pai nem mãe", retornando-se, na maioria das vezes, às verdades duras que devolvem o conforto metafísico, da salvação, da Verdade e da fé.
7. Penso, de qualquer maneira, que o ator jurídico encontra-se num dilema: se reconhece que o sujeito consciente não concede a segurança prometida pode cair num niilismo relativista perigoso, mas se acolhe a consciência eclipsada no "eu", está perdido desde sempre. Fica à mercê, neste último caso, das relações de poder indicadas pela "Análise do Discurso", do qual, foi bem apontado no texto, o argumento de autoridade, daqueles que emitem o discurso reconhecido pelo "Monastério dos Sábios" (Warat), produz a "violência simbólica" (Bourdieu) do discurso jurídico dito "sério". Veja-se que o discurso jurídico dito sério, mostra Eni Orlandi, elimina o adversário tido por não sério, se alia ao discurso reconhecido como sério e se cobre pelo manto da seriedade. Neste discurso não existe espaço para democracia, alteridade, havendo espaço aí, neste pensar, mesmo que de forma mitigada, para Habermas. É preciso compreender que entre o bem-dito e o mal-dito encontra-se um silêncio que diz, sendo importante perceber o que não se diz ou o que não se quis. E o desvelar, vela, sempre. Assim, o sentido da estrutura, inclusive psicanalítica, domina, condiciona. a estrutura do sentido. E como a palavra não segura, nem existem sentidos unívocos, o sentido navega, mais ou menos, entre o sentido da estrutura e a estrutura do sentido.
8. Nada melhor do que o autor ao nos mostrar o conteúdo do livro: "Por isso, o subtítulo "A decisão judicial ‘entre’ o sentido da estrutura e a estrutura do sentido" traz, propositadamente, uma ambigüidade: a expressão "entre" inicialmente denota que a compreensão do direito depende do sistema constitucional (perspectiva ôntica, estrutura do sentido) e do sujeito existencial (perspectiva ontológica, sentido da estrutura) e, numa segunda leitura, que o processo decisório/compreensivo do caso jurídico se realiza no "meio", no termo médio dos dois pólos do círculo hermenêutico." Daí o lugar e a função da Hermenêutica Filosófica, com a qual a hermenêutica jurídica do senso comum teórico se desfaz. A sofisticação, assim, verifica-se no caráter unitário da compreensão, cujos desafios democráticos são articulados em face de um Sistema Constitucional em constante construção. Isto porque as pré-noções democráticas precisam de acomodação no sujeito para, depois, servirem para uma antecipação constitucionalmente adequada do sentido.
9. Cabe dizer, ao final, que Marco Aurélio Marrafon é uma das cabeças mais brilhantes que já conheci. Possui, ainda, o diferencial de ser humilde, coisa que só gente madura teoricamente pode ser. Consegue articular um texto denso com o jeito de excelente professor que é. Espero, assim, que o texto seja lido na totalidade. Com ele o leitor não sairá ileso, uma vez que a sua "pré-noção" será, necessariamente, sofisticada. O ganho, com isto, não é só do leitor, mas da própria democracia!
Rio de Janeiro/Curitiba/Joinville, agosto de 2008.

23/02/2009

Direito Penal e Controle Social


Retornei ao Juízo Criminal, depois de 7 anos na Infância e Juventude. E muita coisa volta.... textos e ditos antigos, com os quais preciso dialogar. Fragmentos seguem, esperando que se possa articular um sentido.




Beccaria e Foucault: a humanização das penas e a bondade dos bons, quem nos salva?


“Em nossa sociedade, todo homem que não chora no enterro de sua mãe corre o risco de ser condenado à morte.” Camus

1 – O ponto de partida escolhido arbitrariamente, claro, para deslizar o diálogo entre Beccaria e Foucault é o campo do direito penal, especificamente sua humanização. Não pretendo, por evidente, discorrer sobre a proposta de cada um, mas sentar os discursos para um diálogo possível. Evidentemente que este diálogo se dá no registro do Simbólico, onde o Imaginário pode justapor significantes, diz Foucault, tocando na borda do Real. A pretensão, pois, é deslizar, sem metalinguagem.
2 – Aproveito de Beccaria a pretensão de humanizar o direito penal e como este discurso foi apropriado ideologicamente para, mediante um giro de sentido, propiciar o que Foucault denunciou como “normatização” dos sujeitos. É preciso sempre se desconfiar dos discursos prenhes de humanização, em nome do Bem, do Justo, da Verdade, porque se colocam, de regra, no lugar da opressão, da salvação, da docilização, do canalha, diria Lacan.
3 – Paradoxalmente, mas não sem razão, historicamente o homem foi colocado no centro do discurso. As justificações do poder, então religiosas, foram substituídas por outros mitos: legitimidade, poder constituinte, contrato social, pai da horda. Esta alteração da palavra primeva, todavia, manteve o lugar cativo. Nem poderia ser diferente, já que no início está o mito. A questão que se coloca é que o projeto da Modernidade manteve a condição de opressor/oprimido, como bem denuncia Dussel, sendo que, ademais, o consenso intersubjetivo é impossível abaixo do Equador. Habermas não está preocupado, por básico, com o terceiro mundo.
4 – Estamos, assim, perdidos ou achados na linguagem, onde o poder desfila como protagonista. Foucault demonstrou seu vínculo em diversos momentos, indicando a possível ordem do discurso. Neste campo é o poder que precisa ser trazido para o centro da discussão, principalmente a maneira pela qual a grande parcela dos atores sociais encontra-se obliteradas de qualquer dimensão crítica de seus atos, embalados ainda pelo imperativo categórico Kantiano, acreditando, ilusoriamente, que a lei deve ser cumprida, sem reflexão crítica. Hannah Arendt demonstrou, com Eichmann, os perigos de se cumprir alienadamente as leis, porque existe um limite para além do jurídico, o qual tenta cercar, mas não consegue, que é o poder, agravado em tempos Neoliberais, em que o Mercado não consegue dar conta da estrutura. Este limite está no campo da ética. Não a formal, mas a apontada desde um critério material: a vida, sua produção, manutenção e desenvolvimento em condições dignas, lembra Dussel.
5 – A estrutura da linguagem – que importa e condiciona – é, ainda, em grande parte, vinculada aos postulados da Filosofia da Consciência, indagando o “ente” a partir de um sujeito universal ilusório. Desde o giro lingüístico, a pragmática foi trazida para o centro da cena, deixando antever que os contextos modificam o sentido que acaba migrando, bem sabia Barthes. Seduzidos pela leitura objetiva da realidade, sem se dar conta que a representação do mundo encontra-se no registro do Imaginário, ou seja, da ficção, ainda se acredita, piamente, nas possibilidades descritivas da realidade. Pura ilusão que atende a interesses ideológicos e, principalmente à falta originária de cada dia. Resultado disso é que se cumpre a lei sem um necessário limiar crítico. Zizek define esta postura com a frase “Eles não sabem o que fazem”, alienados que estão do seu desejo, sempre sujeitado ao do Outro, claro, mas sem a dimensão crítica. E o orgulhoso sujeito da Modernidade segue feliz, crente que um dia chegará no paraíso que, para grande parte de nós, por sorte, está perdido, graças a Deus. Parte-se, assim, da Civilização e do Mal Estar que ela impregna.
6 – De maneira que a humanização da Justiça Penal e da Execução da Pena, em nome do Bem, do Justo, propiciou que o rompimento proposto por Beccaria tenha se transformado em mecanismo de poder. Através dele o sujeito é desubjetivado para se tornar objeto do conhecimento científico. Categorizado, marcado, normatizado, enfim, morto em sua subjetividade. A palavra de ordem passa a ser a de “ortopedia moral”, do pastoreiro e da salvação.
7 – Por aí se percebe que a interlocução com a psicologia e a psicanálise, lugar de onde procuro falar, na minha visão, não pode se dar mediante a elaboração de pareceres conclusivos, enunciados em face de um imaginário sujeito universal. É certo que existem possibilidades de auxílio, desde que haja demanda, para que somente assim a intervenção seja eticamente justificada. O que se dá, de regra, é que lotados de boas intenções, os atores sociais – psicólogos e muitos psicanalistas – operam dentro da estrutura emitindo laudos, pareceres, análises desprovidas de um mínimo de base epistemológica e, por via de consequência, são antidemocráticas.
8 – Sabe-se, por básico, que para que qualquer afirmação minimamente científica seja aceitável deve ser verificável, na linha de Popper. Todavia, neste campo, elas não podem ser confirmadas por procedimentos democráticos, ou seja, inexiste processo possível de constatação, perdendo-se, não raras vezes, no imaginário dos atores enleados no processo. Deve se dar conta de que a emissão de um parecer funciona, na maioria dos casos, como “mecanismo paliativo de desencargo” (Jacinto Coutinho), ou seja, o Juiz embarca alienadamente nas conclusões do conhecimento técnico, sem maiores reflexões, até porque se sabe a dificuldade de tal lugar (Legendre). E esta postura não é democrática.
9 – De outro lado, alguns psicanalistas do início do século passado – Jimenez de Ásua, por todos – defendiam a purificação do dito “criminoso” por técnicas de abordagem psicanalítica, isto é, defendiam a análise imposta, não fosse, todos deveríamos saber, a análise e o trabalho sério desenvolvido a partir de uma transferência que não acontece por sentença judicial. Estes mesmos, propugnaram, também, que a descoberta da Verdade – ilusão grega, bem demonstrou Nietzsche – fosse descoberta via laudos periciais da personalidade, gerando situações Kafkanianas, como a narrada por Roudinesco: “Quando foi sexualmente agredida por um homem e levou o caso aos tribunais, o promotor sustentou que a mulher tinha 21 personalidades, nenhuma das quais havia consentido em manter relações sexuais. Os juristas e os psiquiatras puseram-se então a discutir se as diferentes personalidades dessa mulher seriam capazes de depor sob juramento e se cada uma delas tinha ou não suas próprias aventuras sexuais. Em 1990, o homem foi julgado culpado, pois três das personalidades da vítima depuseram contra ele. Após uma contra-perícia, entretanto, realizou-se um novo julgamento. Alguns psiquiatras afirmaram, na verdade, que a mulher tinha 46 personalidades, e não 21. Assim, era preciso saber se essas novas personalidades também prestariam depoimento no processo. (...) Casos como esses tornaram-se freqüentes no continente americano. Eles mostram com clareza a que fanatismo pode levar a idéia de que todo ato sexual é em si um pecado, um estupro, um trauma, e de que todo inconsciente é uma instância dissociada, sem dar margem alguma à subjetividade.”
10 – Assim, no espaço em que o saber psicológico e psicanalítico pode ser trazido ao Direito Penal, entendo que a atuação deve se dar em favor da pessoa acusada ou condenada, desde que haja demanda, sem que tal intervenção possa implicar em qualquer prejuízo ao sujeito, sob pena de se instaurar uma abordagem arbitrária, incontrolável, empulhadora e facista. De sorte que o discurso científico, que agrada muitos satisfeitos com as belas miragens que propicia, principalmente narcisísticas, no sentido de se medir geometicamente a personalidade de alguém, precisa ser rejeitada. A democracia exige que o processo como procedimento em contraditório (Fazzalari), seja o mecanismo apto ao reconhecimento de resposabilidades, sem que este reconhecimento implique, para o sujeito, qualquer obrigação de modificação interna, na linha do garantismo de Ferrajoli, rejeitando-se a “normatização” denunciada por Foucault. Somente assim há ética na intervenção.
11 – Do contrário, cheio de boas intenções, por evidente, o profissional estará atuando como “aprendiz de feiticeiro”, isto é, manejando um poder maior do que o que domina, com o perigo de se queimar. Enfim, o sujeito pode ser do jeito que quiser e o Estado Democrático de Direito, via Sistema Penal, como diz Ferrajoli, não pode querer que a pena ou o processo penal o tornem melhor, nem pior. Ele, pelo primado da tolerância, típico dos Estados Laicos, pode desejar o que quiser, assumindo as responsabilidades daí decorrentes.
12 – A cruzada pela salvação moral é estranha à democracia, como o inconsciente o é do orgulhoso sujeito da Modernidade. Por isso a ideologia da perícia não pode ser aceita comodamente. Esta é a aposta e o preço a ser pago. Senão, como diz Agostinho Ramalho, quem nos salva da bondade dos bons?

17/02/2009

Princípio da Eficiência - Livro Júlio Marcellino


* Reiniciar o BLOG com prefácios que fiz recentemente. Enjoy!

1. Baudrillard conta uma fábula de Nasreddin aplicável ao Princípio da Eficiência. Ele é visto todos os dias passar a fronteira com mulas carregadas de sacos. Cada vez que passa, é revistado, inspecionam os sacos, mas não encontram nada. E Nasreddin continua a passar a fronteira com suas mulas. Muito tempo depois, perguntam o que é que ele poderia estar contrabandeando. E Nasreddin responde: ‘Eu fazia contrabando de mulas’.
2. O mundo se faz de apostas. E quando Júlio Cesar Marcellino Jr. chegou, empolgado, para me apresentar o "Projeto de Dissertação" sobre o "Princípio Constitucional da Eficiência" percebi a vivacidade de um pesquisador sério que, no entanto, até aquele momento, ainda era seduzido pelo Princípio da Eficiência no sentido indicado pelos neoliberais, lugar que já tinha ocupado, "nefelibatamente", diria Lyra Filho. Decidi apostar naquele jovem advogado, professor universitário. Desde a leitura que fez na matriz dos neoliberais – Hayek e Friedman – e dos críticos latino-americanos – Hinkelammert, Dussel, Miranda Coutinho, Celso Ludwig, sem demoras, entendeu a sublimação ideológica (Zizek) que o Princípio da Eficiência apresentava. Uma palavra vedete que veio, por seu vazio, seu buraco negro, dar sentido, como sempre, ao que se quer depois, desde antes. A mão invisível (ideológica e eficiente) do Mercado assumiu, no contexto do Direito, a proeminência a partir do Princípio da Eficiência, inserido como significante primeiro de qualquer compreensão jurídica, ao preço da democracia.
3. Poucos se deram conta, evidente. Júlio não é um deles. Gostam de ser enganados pelos Nasreddin de sempre. Diferente do nosso personagem que atravessa "mulas", o Princípio da Eficiência segundo defende Jacinto Nelson de Miranda Coutinho produziu um câmbio epistemológico do Direito, tornando a forma de pensar a partir de meios, reproduzindo vítimas. Claro. Vítimas de um modelo de Estado do Bem Estar Social não realizado e que se encontra, paradoxalmente, em desconstrução. Dito de outra maneira, o Estado Social é imaginariamente desfeito sem nunca ter sido, efetivamente, erguido. Trata-se da destruição de ruínas-sociais. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho sustenta: "Neste quadro, não é admissível, em hipótese alguma, sinonimizar efetividade com eficiência, principalmente por desconhecimento. Afinal, aquela reclama uma análise dos fins; esta, a eficiência, desde a base neoliberal, responde aos meios."
4. O discurso neoliberal promove, assim, uma "despolitização da economia", como argumenta Zizek, abrindo espaço para que o significante da eficiência penetre no jurídico como sendo a nova onda redentora. A economia acaba se tornando algo praticamente sagrado da Nova Ordem Mundial, sem que se possa fazer barreira pelo e no Direito. A eficiência inserida no caput do art. 37 da Constituição da República, percebida desde o ponto de vista de Pareto, Coase ou Posner, passa a ser o critério pelo qual as decisões judiciais devem, necessariamente, submeter-se. Não mais num cotejo entre campos – econômico e jurídico –, mas na prevalência irrestrita da relação custo-benefício. Este discurso maniqueísta entre eficientes de um lado e ineficientes de outro, seduz aos incautos de sempre, os quais olham, mas não conseguem perceber o que (mula?) se passa. A questão é mostrar que este é um falso dilema, adubado ideologicamente.
5. Sair deste quadro de idéias colonizadas é tarefa individual. Faz-se ao preço de um estudo sério que não se apazigua com frases feitas emitidas pelo senso comum teórico (Warat) e vendidas no mercado de decisões judiciais. A dissertação de Júlio, ora transformada em livro, é um excelente início para se entender que as mulas continuam a ser contrabandeadas... Mostra como a Academia pode ainda se transformar em um lugar de reflexão com efeitos práticos. Com ela, pode-se escolher mirar a questão desde outro ponto de vista. Mas não se pode obrigar a ninguém. O que não se pode é ser tolerante com o discurso das ‘Almas Belas’ que mantêm uma postura "nefelibata" (Lyra Filho) e são co-responsáveis alienadas pelas vítimas sociais de todos os dias.
6. O primeiro orientando a gente nunca esquece. Júlio foi o primeiro que defendeu uma dissertação sob minha orientação. Aprendi muito com ele. Conquistou um lugar, merecido. Borges disse algo que se aplica ao Júlio: "Entre las cosas hay una/ de la que no se arrepiente/ nadie en la tierra. Esta cosa/ es haber sido valiente."

04/02/2009

Adolescentes, Ato Infracional e a Maternagem (i)Limitada



Adolescentes, Ato Infracional e a Maternagem (i)Limitada

1 – Este texto procura explicitar a maneira pela qual a Justiça da Infância e Juventude brasileira encara a questão do ato infracional. Pretende, para tanto, buscar uma aproximação com a psicanálise. Acolhe-se, de plano, que as dificuldades de diálogo entre direito e psicanalise são enormes, uma vez que o sujeito, para o direito, acaba sendo o consciente, capaz de dominar pelo eu suas ações, enquanto para a psicanálise encontra-se, desde uma leitura lacaniana, submetido ao inconsciente freudiano, estruturado como se fosse linguagem. Neste diálogo é que se busca seguir, marcando-se a situação atual desta interlocução nos denominados atos infracionais.
2 – Apesar de o (Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90) estabelecer que a adolescência inicia-se aos doze anos e termina aos 18 (ECA, art. 2o), somente os que sofrem do que já se chamou de ‘Complexo de Prazo de Validade’ é que podem acreditar que isto corresponde à realidade. Cada adolescência é única, singular, e como tal deve ser respeitada em sua alteridade. Aí reside a ética de respeito ao desejo do sujeito e dos atores jurídicos. Sem esta compreensão o mero fato biológico de se completar a idade respectiva significaria o início da adolescência, situação, de fato, ilusória.
3 – Neste contexto, seguindo a matriz de Freud, Alberti aponta que na fase da adolescência se dá, em regra, o encontro com o real do sexo e também o trabalho de desligamento dos pais, necessitando, todavia, que algo neles (pais) falhe, isto é, deixe a desejar para que a função paterna se instaure. Realinhar seu papel social é um desafio, mormente porque o véu do período de latência se esvai. A diferença de gerações e o processo de identificação sexual implicam em escolhas singulares, situadas na dinâmica das pressões sociais (família, etc..). As mudanças estão aí e no trabalho de elaboração as regras universais são insuficientes. Dando-se conta, na maioria dos casos, de que foi objeto do desejo do Outro, de quem exerce as funções paternas, surge uma encruzilhada. Independetemente de ser uma crise ou um processo, a adolescência implica, necessariamente, um acertamento subjetivo em que os trilhamentos do complexo de Édipo estarão presentes. As relações do sujeito adolescente com seu entorno, então, ganham novos matizes, cujo enfrentamento depende, em muito, da maneira como o sujeito foi estruturado. A intervenção nesta seara para ser ética demanda o reconhecimento da singularidade e da procura individual de atribuição de sentido.
4 – Podem ocorrer, assim, dificuldades neste momento, culminando em construções defensivas em que o sintoma não compromete o sujeito, podendo se dar a simbolização. Dentre as saídas, aponta Cahn, existe a possibilidade de dificuldades banais, baixo rendimento escolar, problemas de relacionamento com o entorno, inibição, distúrbios de comportamento, drogas, ansiedade, pequenos delitos, condutas masoquistas ou auto-punitivas, conflitos com os pais e irmãos, onde prepondera a angústia por sua identidade e identificações. Depende fundamentalmente do trilhamento do Complexo de Édipo a maneira pela qual o adolescente poderá enfrentar os desafios deste momento conflituoso do estabelecimento da subjetividade.
5 – Por esta estrutura de acertamento se explica, assim, a resoluta tendência ao agir, de não pensar duas vezes, já que se sabe – apesar de se negar – que o sentido é a posteriori (Sá-Carneiro). Entendido o ato infracional como (possível) sintoma de que algo não está acertado subjetivamente, desde que haja demanda, porque impor é violador da ética do desejo e não se sustenta no Estado Democrático de Direito de cariz garantista, pode-se, caso-a-caso, constuir-se caminhos que demandam a participação dos agentes envolvidos, especificamente o adolescente, os pais e a sociedade. Caso não haja demanda, sem eufemismos, é puro ato de poder, já que o fundamento da medida socioeducativa é agnóstico (Carvalho). Neste sentido, deve-se acreditar em novas formas de engajamento ao laço social. Porque se isto não ocorrer, na seara da infância e juventude, entrega-se o bilhete da imputabilidade, deixando-o à mercê do sistema penal.
6 – Desde a mirada da Criminologia Crítica, Cirino dos Santos aprofunda o questionamento e destaca que o "desvio" pode fazer parte de sua construção subjetiva, descabendo a intervenção estatal, principalmente nos casos de bagatela e pequenas questões comportamentais. Assim é que a (dita) agressividade não significa sempre a dita ‘delinqüência’, mas um momento da vida do sujeito. Sujeito este adolescente, protagonista de um momento de passagem, sem ritos sociais de apoio, lançado aos seus próprios mitos, na eterna tentação de existir, se constituir como sujeito, numa sociedade complexa. Rejeitando-se, pois, os discursos positivistas fáceis e fascistas, deve-se buscar entender este possível movimento agressivo como o sintoma de que algo não vai bem e buscar construir um caminho com o outro e o Outro. Sem esperança, a agressividade é mais que esperada, mormente diante das condições sociais dos sujeitos frequentadores das Varas Criminais e da Infância e Juventude: a pobreza. Percebe-se, assim, que a estrutura psíquica condiciona o sujeito nas suas relações com o meio, constituindo-se a adolescência, no caso do ato infracional, uma possibilidade de intervenção em Nome-do-Pai, na perspectiva de trazer o adolescente para o laço social, sabendo-se, ademais, que a maneira como será significada depende de cada singularidade do sujeito adolescente, sem que haja, portanto, uma regra universal de ouro.
7 – De qualquer forma, a resposta estatal brasileira em face da verificação de um ato infracional é a aplicação de uma medida socioeducativa (advertência, reparação do dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação). A postura adotada, de regra, todavia, é a de salvação moral-comportamental dos adolescentes, via "conserto" de sua subjetividade. Busca-se, na grande maioria dos casos, movimentar o aparelho de controle social com a finalidade de "normatizar" o adolescente, o desconsiderando como sujeito para o tornar objeto de atuação.
8 – Assim é que após a queda, isto é, o ato infracional, organiza-se, assim, uma cruzada pela salvação moral do adolescente. Longe de buscar estabelecer um limite, como substituto paterno, a função materna acaba sendo incorporada pela Justiça da Infância de Juventude brasileira. Assim, lotados de boas intenções, claro, o juiz, o promotor de justiça, os advogados, a equipe interprofissional, todos, de regra, buscam agarrar o cajado e indicar o caminho da redenção ortopedicamente. Desconsidera-se, imaginariamente, que a adolescência é o momento do reencontro sempre traumático com o real do sexo, do desligamento dos pais, do conflito de gerações, num mundo em que impera a ausência de limites, naquilo que Melman denomina "Nova Economia Psíquica", ou seja, em que, sem Lei, gozar do objeto passa a ser o padrão social de atuação. Em um mundo de satisfação plena, felicidade eterna, cuja maior dificuldade é "ser humano", possuir angústia, o ato infracional pode significar a pretensão de existir do adolescente. Pode ser o sintoma de que ali, no ato, o sujeito procurar resistir ou se fazer ver. A questão se agrava, de fato, no Brasil, porque, à extragrande maioria, as condições mínimas de subsistência não existem e, o agir, muito mais tranqüilo para os adolescentes, é fomentado pelo laço social frágil, cada vez mais horizontalizado, no qual o Estado, que ainda exercia alguma função paterna, resta aniquilado pelo levante neoliberal.
9 – Esta sustentação do lugar adolescente, então, pode ser o indicativo de que o sujeito resiste. Evidentemente que demanda uma compreensão em sua singularidade. De qualquer forma, pode significar pelo menos duas vias: 1) a pretensão de gozar do objeto sem limites, conforme indicado por Melman e Lebrun, a saber, numa estrutura perversa; 2) a resistência à estrutura que lhe determina gozar sem limites. No primeiro caso, o laço social encontra-se, de regra, frouxo, livre, próprio do "Homem sem Gravidade", na mais ampla perversão, entregue ao consumo compulsivo do objeto indicado – pela propaganda que sorri – na pretensão sempre falha de se completar. No segundo caso, contra tudo e todos, o sujeito busca um limite. Talvez encontre um substituto paterno interditando, se tiver sorte, como aponta Legendre com o cabo Lortie.
10 – Entretanto, independentemente do que busca, na estrutura dos Juízos da Infância e Juventude brasileiros acaba encontrando uma maternagem sem limites. Entenda-se que neste aspecto, longe de se buscar ouvir o adolescente, apontar um limite que não se pode transpassar, acontece um acolhimento deste na condição de vítima, com direito à exclusão de responsabilidade. E sem a responsabilidade de seus atos pouco resta a fazer para que sustente um lugar. É que o desconsiderando como sujeito de seu próprio futuro e sem responsabilidade pelo acontecido, a posição da Justiça é a de chancelar o excesso.
11 – A medida socioeducativa, ou seja, a resposta estatal brasileira, ao promover uma finalidade pedagógica, fomenta a normatização e a disciplina (Foucault), no que pode ser chamado de "McDonaldização" das medidas socioeducativas, a saber, por propostas padrões que desconsideram, por óbvio, o sujeito e, especialmente, a existência de demanda, para em nome da salvação moral, do bem do adolescente, proceder-se ao fomento de sua desubjetivação. De regra, impõe-se tratamento, educação, disciplina, independentemente do sujeito, então objetificado. Logo, sem ética. Na maternagem ilimitada e, muitas vezes, perversa, ao se buscar imaginariamente o sujeito, culmina-se com o afogamento de qualquer resto de sujeito que pretenda se constituir. Assim é que o estabelecimento de engajamento ao laço social exige, primeiro, que o sujeito enuncie seu discurso, situação intolerada pelo modelo fascista aplicado no Brasil. Sabe-se, com efeito, que qualquer postura democrática não pode pretender melhorar, piorar, modificar o sujeito, como bem demonstra Ferrajoli. Caso contrário, ocupará sempre o lugar do Outro, do canalha.
12 – Portanto, no Brasil, qualquer pretensão pedagógica-ortopédica será sempre charlatã, de boa ou má fé. Resta a nós, no limite do possível eticamente, contra o senso comum social, respeitar o sujeito e com ele, se houver demanda, construir um caminho, sempre impondo sua responsabilidade pelo ato e o relembrando, ou mesmo advertindo, de que existe algo de impossível, algo que se não pode gozar. Nem nós, nem eles. A cruzada pela salvação moral é estranha à democracia, como o inconsciente o é do orgulhoso cidadão da Modernidade. Senão, como diz Agostinho Ramalho Marques Neto, quem salva os adolescentes da bondade dos bons? Neste mundo sem limites, sem gravidade (Melman), cabe indagar nosso desejo de continuar, e encontrarmos um caminho singular pelo Direito, o qual tem se tornado um instrumento da satisfação perversa do objeto. Não para tornar o adolescente mais feliz, sob pena de se cair na armadilha do discurso social padrão, mas de resistir apontando o impossível. Este é o desafio: articular ética e singularmente os limites, num mundo sem limites, pelo menos, em países do terceiro mundo, como o Brasil, àqueles que os não encontram na realidade da miséria.
13 – Assim é que seguindo Agamben é necessário se buscar parar esta máquina, para que os adolescentes não se transformem – mais ainda – na figura do "musulmán" de Auschwitz retratada por Agambem. Embalados pela necessidade de conter a escalada de atos infracionais, ou seja, a estrutura cria a exclusão e depois sorri propondo a exclusão novamente, via sistema infracional, e os excelentes funcionários públicos nefelibatas – tal qual Eichmann –, na melhor expressão Kantiana, cumprem suas funções, sem limites. Existe uma co-responsabilidade social, da qual somente se pode tangenciar – como de costume – cinicamente. Para estes, no interesse do adolescente, há necessidade derruba qualquer barreira processual, pois, seguindo Agambem, a necessidade não tem lei, isto é, não reconhece qualquer lei limitadora, criando sua própria lei. A construção fomentada e artificial de um estado de risco faz com o que o discurso se autorize, em face das ditas necessidades, a suspender o Estado Democrático de Direito, promovendo uma incisão de emergência e total.

Mega Big Brother

Contador de visitas