Autos n°
Ação: Ação Penal - Júri/Lei 11.340/2006
Autor:
Ministério Público do Estado de
Santa Catarina
Acusado:
Vistos, etc.
O MINISTÉRIO
PÚBLICO moveu a presente Ação Penal contra C.E.S., pela prática,
em tese, do crime previsto no art. 121, § 2º, III, c/c o art. 14, II, todos do
Código Penal, constando da denúncia que o acusado e a vítima B.N.A.
mantiveram namoro por aproximadamente dois anos, sendo que após o término do
relacionamento o acusado, inconformado com o rompimento, passou a atentar
contra a integridade física e mental da vítima, passando a praticar atos
configuradores de violência doméstica, culminando por tentar atear fogo em si e
na própria vítima.
Assim, em data de 29 de janeiro de 2013,
por volta das 23h45m, na residência da vítima, o denunciado, imbuído da
intenção homicida, amarrou-a pelos braços e jogou-a deitada sobre a cama,
momento em que, com diversos fósforos, ateou fogo na cama e no lençol, apenas
não conseguindo incendiá-la porque a vítima passou a se mexer e derrubou a
caixa de fósforos.
Na mesma oportunidade, demonstrando sua
intenção homicida ao dizer que "iriam morrer juntos", o denunciado
ateou fogo na sua própria camiseta, apenas não conseguindo a consumação de
delito com a morte da vítima por fogo porque outro casal que havia chegado ao
apartamento escutou os gritos da vítima e sentiu o cheiro de queimado que
emanava do quarto.
Concluiu o Ministério Público, requerendo
a citação do denunciado para se ver processado e, ao final, o encaminhamento do
processo para julgamento perante o e. Tribunal do Júri.
A denúncia foi recebida e determinada a
citação do acusado para responder a acusação no prazo estabelecido em lei (art.
406, do CPP). Na mesma oportunidade, foi revogada a prisão preventiva do
acusado e aplicadas medidas protetivas e cautelares diversas da prisão (fls.
109/114).
Foi apresentada a defesa preliminar, bem
como arroladas testemunhas (fls. 120/129).
Não se observado ser o caso de absolvição
sumária (art. 397, ambos do CPP), foi designada audiência de instrução e
julgamento, oportunidade em que foi colhida a prova oral com a inquirição da vítima,
das testemunhas arroladas pelas partes e o interrogado o acusado (fls. 172),
seguindo o processo para alegações finais.
Em suas derradeiras alegações o Ministério
Público pugnou pela pronúncia, pois sustentou que as provas carreadas ao
processo evidenciaram que o acusado agiu com a intenção de matar a vítima,
somente não atingindo seu intento por circunstâncias alheias à sua vontade.
Destacou que o uso de fogo configura o meio cruel, pugnando pela manutenção da
qualificadora.
A defesa, na mesma oportunidade,
manifestou-se no sentido da impronúncia do acusado, não havendo razões para
submetê-lo a julgamento pelo Tribunal do Júri.
Postulou pela improcedência do pleito
inicial, com a absolvição do acusado ou, de modo alternativo a impronúncia ou o
afastamento da qualificadora.
É O
RELATÓRIO.
DECIDO.
Trata-se de ação penal pública
incondicionada em que C. E. S. é acusado pela
prática do delito de homicídio qualificado pelo meio cruel em sua modalidade
tentada (art. 121, 2º, III, c/c o art. 14, II, ambos do Código Penal do Código
Penal), delito este perpetrado contra B.N. do A.
Em sede de pronúncia, dispõe o art. 413 do
CPP que o juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da
materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de
participação.
Sobre a decisão de pronúncia, colhe-se da Lição de
Eugênio Pacelli e Douglas Fischer:
A pronúncia é a decisão pela qual o juízo monocrático
(ainda na fase do denominado judicium accusationis) verifica a existência de um
juízo de probabilidade - e não de certeza - acerca da autoria ou participação
do delito e de provas suficientes acerca da materialidade.
Trata-se de uma decisão interlocutória mista, tendo
como efeito o encerramento da fase procedimental delimitada, que ainda é
passível de impugnação mediante recurso em sentido estrito (diversamente do que
- corretamente se deu - em relação à impronúncia e à absolvição sumária). Não
tem eficácia de coisa julgada na medida em que não vincula o Tribunal do Júri,
que poderá, por exemplo, até mesmo desclassificar o crime para outro que não
incluído na sua competência, contudo, sujeita-se às peias da preclusão, quando
então terá prosseguimento o rito.
Há entendimento jurisprudencial e doutrinário no
sentido de que, nessa fase procedimental, a submissão ao Tribunal Popular
decorreria do princípio do in dubio pro societate. Compreendemos que, num
sistema orientado por uma Constituição garantista, não poderia em sua essência
o princípio invocado servir como supedâneo para a submissão ao Tribunal
Popular. De fato, a regra é a remessa para julgamento perante o juízo natural
nessas circunstâncias (eventual dúvida). Mas não pelo in dubio pro societate.
Parece-nos que esse é o fundamento preponderante: como regra, apenas o Tribunal
do Júri é quem pode analisar e julgar os delitos dolosos contra a vida (também
os conexos - art. 78, I, CPP). É dizer, o juiz natural para a apreciação dos
delitos contra a vida é o Tribunal do Júri, a quem, como regra (salvo nas
hipóteses de absolvição sumária ou desclassificação), deverá ser regularmente
encaminhado o processo.
Na fase de pronúncia, exige-se do juiz unicamente o
exame do material probatório produzido até então, especialmente para a
comprovação da inexistência de qualquer das possibilidades legais de
afastamento da competência ou então de absolvição sumária (situações estas em
que, ao contrário da pronúncia, deverá haver convencimento judicial pleno) (Comentários ao Código de
Processo Penal e sua Jurisprudência. 4. Ed. Atlas: 2012, p. 848-849).
No caso dos autos, observo que a materialidade
resulta unicamente do termo de exibição e apreensão de fls. 20, visto que a
vítima não chegou a ser atingida em sua integridade física.
Quanto à autoria, observo
que o acusado afirmou em seu interrogatório que foi até a casa da vítima no dia
dos fatos, oportunidade em que tentou o suicídio ateando fogo em sua própria
camiseta. Narrou que passaram a conversar sobre o término do relacionamento,
sendo que diante da recusa de B. em continuarem juntos foi até a cozinha e
apanhou uma caixa de fósforos, usando-os para atear fogo em sua camiseta. Negou
que tenha amarrado a vítima ou que atentou contra a vida desta, afirmando que o
fogo na cama teve início a partir do fogo em sua camiseta. Narrou que o fogo na
cama foi apagado por ele próprio, reiterando que em nenhum momento a vítima
correu risco de morrer. Enfatizou que
não tinha a intenção de matar a vítima, pois com o término do relacionamento
sua intenção era tirar sua própria vida apenas, tanto que logo após deixar o
presídio tentou mais uma vez o suicídio e que, por conta disso, vem
submetendo-se a tratamento psicológico.
Extrai-se do interrogatório do acusado a
sua negativa sobre a intenção de matar a vítima com o uso de fogo, destacando
que tentou na verdade o suicídio em face do inconformismo pelo término do
relacionamento afetivo.
A vítima confirmou em seu depoimento o modus
operandi do acusado, declarando que estavam em vias de terminar o
relacionamento. Disse que na noite dos fatos tiveram uma nova discussão a
respeito do fim do relacionamento, quando então deixou claro ao então namorado
que precisavam "dar um tempo". Foi nesse momento que, segundo a vítima,
o acusado ateou fogo em sua própria camiseta, quando então ela ficou assustada
e começou a gritar, motivando suas colegas de moradia a chamarem a polícia.
Prosseguiu narrando que o acusado não chegou a amarrá-la na cama ou mesmo
praticar qualquer agressão física, limitando-se apenas a segurá-la pelo braço
quando perguntou se eles realmente não ficariam mais juntos. Além disso,
amenizou ocorrências anteriores de supostas práticas de violência doméstica,
afirmando que o acusado sempre foi uma pessoa calma.
Descrevendo a cena ocorrida naquela noite,
a vítima voltou a afirmar que o acusado foi até a cozinha – após ela ter dito
para darem "um tempo" – e no retorno trancou a porta do quarto,
guardando a chave no bolso, mais uma vez questionando-a se ela iria mesmo deixá-lo.
Diante a resposta positiva da vítima, o acusado então ateou fogo em sua
camiseta dizendo que não conseguiria viver sem ela, relatando que neste momento
o fogo da camiseta também atingiu a cama, mas que com as próprias mãos o
acusado debelou o fogo, acrescentando a vítima que ele fez isso porque ela tem
certeza "que ele não tinha intenção de botar fogo na minha casa"
(gravação – 12m25s a 13m10s). Foi nesse momento que vieram em seu socorro a sua
colega de moradia e seu namorado (K. e T.), os quais abriram a porta com outra
chave e foi K. quem apagou o fogo na camiseta do acusado.
A vítima relatou que mesmo depois do fogo ter sido
apagado o acusado continuou a insistir na manutenção do namoro, tendo inclusive
segurado-a, e somente deixou o local após a intervenção de K.
Negou qualquer pressão do acusado ou de interposta
pessoa visando a mudança de seu depoimento, bem como pela desnecessidade de
medidas de proteção, atribuindo as divergências entre seu depoimento judicial e
aquele prestado na fase policial ao nervosismo do momento em que este último
foi tomado. Por fim, disse que em nenhum momento achou que o acusado tivesse
realmente a intenção de tirar a sua vida.
Nota-se, claramente, a existência de sérias
divergências entre o depoimento que a ofendida prestou na Delegacia de Polícia
e aquele prestado em Juízo, eis que no primeiro o acusado foi pintado como um
ser cruel que a amarrou na cama e tentou atear fogo no móvel com a vítima
prostrada indefesa; em juízo a ofendida disse que ambos estavam nervosos e que
durante a discussão sobre o fim do namoro o acusado ateou fogo em suas vestes
com a intenção de praticar o suicídio, de sorte que o fogo na cama teve origem
acidental, além do que em nenhum momento ela chegou a ser amarrada.
A testemunha T. M. S., colega de moradia
da vítima, afirmou que naquela noite estava em casa, no seu quarto, em companhia
de seu namorado. Disse ter ouvido uma discussão, indo até o quarto da vítima e
indagado o que estava ocorrendo, e diante da afirmação de que estava tudo
certo, ela retornou para seu quarto. Momentos depois ouviu a vítima gritar por
socorro e sentiu um cheiro de queimado, quando então ela e seu namorado K.
voltaram ao quarto da vítima e viram que a camiseta do acusado estava em
chamas, havia alguns fósforos no chão e a vítima encontrava-se de pé
mostrando-se bastante assustada. Narrou que em seguida o acusado foi até o
banheiro e no chuveiro apagou as chamas, sendo que resolveram chamar a polícia
porque a confusão era grande e também porque tinham medo que ele fizesse algo
"contra ele mesmo". Na chegada da Polícia, localizaram o acusado na
garagem do edifício e nesse local ele acabou sendo preso. A depoente não chegou
a notar se o lençol ou o colchão estavam queimados, vendo apenas fósforos no
chão. Descreveu que vítima disse "ele tentou me matar" e que, na
mesma noite, o acusado disse "que se era para morrer, iam morrer
juntos", mas salientou que todos estavam nervosos e que foi "tudo da
boca prá fora".
Já K. S., namorado de T., assinalou que
estavam com T. no apartamento e perceberam uma intensa discussão entre o
acusado e a vítima, além de sentirem o cheiro de queimado. Viram que B. saiu do
quarto, mas o acusado fez com que ela voltasse ao quarto. A discussão persistiu
e diante disso o depoente resolveu intervir, quando então percebeu que a porta
do quarto da vítima estava trancada. Com a chave do quarto de T. ele abriu a
porta e viu que a camiseta do acusado estava pegando fogo, ao que B. deixou o
local. O acusado dirigiu-se ao chuveiro para apagar o fogo em sua roupa, indo
após para a garagem do prédio. Narrou que quando abriu a porta do quarto, tanto
o acusado como a vítima estavam em pé, não chegando a ver fogo na cama ou no
lençol, sequer vendo marcas de fogo na cama, vendo apenas fósforos caídos no
chão. Não chegou a ver o acusado fazendo ameaças de morte contra a vítima,
ouvindo a vítima gritar por socorro e usar a palavra fogo. Afirmou ter ajudado
a apagar o fogo na camiseta, o que fez usando um balde com água.
O Policial Militar M. R. B., responsável
pelo atendimento da ocorrência, aduziu que receberam um chamado em razão da
prática de violência doméstica. Ao chegarem ao local encontraram a vítima na
rua, tendo ela narrado que o namorado havia "tentado arrombar a
porta" e que ele estava escondido na garagem, local onde de fato o
encontraram. O acusado relatou que "estava doente" porque gostava
muito da vítima, tendo esta comentado que o acusado havia tentado colocar fogo
no colchão e em seu próprio corpo.
As testemunhas arroladas pela defesa nada
viram sobre o ocorrido, sendo ouvidas apenas para destacar que o acusado é uma
pessoa calma e que nunca o viram envolvido em alguma situação de conflito.
Todos os depoimentos são encontrados no CD
encartado às fls. 183.
Com efeito, emerge da prova judicial
coligida nos autos indícios de que na noite dos fatos houve intensa discussão
entre o acusado e a vítima. O relacionamento – então com aproximadamente dois
anos de duração – já vinha desgastado e a vítima tentava colocar um fim no
namoro, fato com o que o acusado não se conformava.
A denúncia, com esteio na prova
indiciária, narra que o acusado tentou matar a vítima amarrando-a e colocando-a
sobre a cama, colocando após fogo em suas vestes e na própria cama, com o que
tanto ele como ela morreriam consumidos pelas chamas.
No entanto, examinando com vagar a prova
oral coligida na instrução do processo vê-se que não há elementos indiciários
suficientes para sustentar a tese acusatória inicial, isto é, de que o acusado
agiu com animus necandi ao atear fogo em suas vestes, mesmo sendo certo
que a vítima estava no mesmo local, pois dimana da prova que o acusado agiu em
rompante que visava exterminar sua vida, aparentemente motivado pelo fim do
relacionamento.
Primeiro,
cabe considerar que em nenhum momento a vítima esteve em efetivo perigo de vida,
pois ela disse não ter sido amarrada na cama e também que o pequeno princípio
de incêndio do lençol foi rapidamente controlado pelo próprio acusado, ficando
claro para ela que o acusado apenas tentou o suicídio quando ateou fogo em suas
vestes. A vítima disse que em nenhum momento chegou a ser ameaçada de morte,
explicando que a divergência entre seu depoimento em juízo e aquele lançado na
fase indiciária deveu-se ao fato de estar nervosa quando ouvida na Delegacia.
Ainda que seja possível que a vítima tenha
atenuado o teor de seu depoimento visando preservar seu ex-namorado, não é
menos verdade que as declarações das testemunhas T. e K. emprestam apoio ao que
ela disse em juízo. Com efeito, tanto um como outro afirmaram que ao adentrar
no quarto da vítima a viram de pé, nada mencionado acerca de estar ela amarrada
sobre a cama. Viram apenas o acusado com as vestes em chamas e alguns fósforos
no chão, não percebendo nenhuma marca de fogo na cama ou no lençol, de sorte
que se o fogo no móvel tivesse sido intenso é certo que teriam percebido os
vestígios e também teriam que atuar para apagar as chamas, o que não ocorreu.
Aparentemente – e não foi produzida prova
pericial para demonstrar o contrário –, o fogo atingiu apenas a camiseta do
acusado e disso conclui-se que o perigo criado foi apenas para ele, sobretudo
porque houve rápida intervenção da T. e de K., bem como o próprio acusado
apressou-se em ir até o chuveiro e extinguir as chamas, mostrando com isso que
se arrependeu do potencial suicídio.
Ainda que o acusado tenha trancado a porta
do quarto – e isso é incontroverso –, nota-se que T. e K. conseguiram abrir a
porta usando uma outra chave, sendo que tudo ocorreu de modo muito rápido. É
possível afirmar que se a vítima estivesse de fato amarrada sobre a cama, não
haveria tempo hábil para que ela se soltasse antes da porta ser aberta. É
particularidade que reforça a ideia no sentido de que a vítima foi além em seu
depoimento extrajudicial, talvez premida pela violenta emoção que situações
dessa natureza certamente causam ou mesmo por sentimento de vingança pessoal
motivado pelas dificuldades que vinha encontrando para terminar o
relacionamento com o acusado, pessoa sem maturidade suficiente para encarar o
fim do namoro.
Após sopesar a prova oral produzida sob o
crivo do contraditório, bem como avaliar à luz dessa prova o agir do acusado,
prepondera a conclusão de que não houve na sua ação o dolo homicida, seja pela
ineficácia do meio empregado, seja porque não visou atingir a vítima com o
fogo, mas sim seu próprio corpo. Quisesse de fato atingir a vítima com o fogo,
teria usado meios mais eficazes para atingir tal desiderato (usando algum
líquido combustível, por exemplo) e realmente a prendido na cama, impedindo
assim que ela pudesse reagir à sua investida.
Cabe lembrar que o acusado foi até a casa
da vítima aparentemente com o objetivo apenas de manter o relacionamento, sendo
que a ideia de autoimolar-se veio apenas quando a vítima "pediu um
tempo". Foi nesse momento que ele foi até a cozinha e trouxe consigo uma
caixa de fósforos. Tratando-se de uma residência, seguro afirmar que o acusado
poderia ter ido até a cozinha e apossado-se de uma faca para praticar o
homicídio ou mesmo buscado algum líquido potencialmente inflamável, conduta
sequer cogitada nos autos. Aparentemente, segundo sobressai da prova encartada,
teve o acusado um acesso de fúria pela recusa da vítima em manter o namoro e
com isso acabou colocando fogo em sua roupa, mas sem a intenção de letalidade no
tocante à ofendida.
Recorde-se que bastou a intervenção da
colega de apartamento da vítima e de seu namorado para que a conduta do acusado
cessasse, pois ao chegarem ao local ele imediatamente seguiu para o chuveiro
visando com isso debelar as chamas que consumiam sua camiseta. Parece, na
verdade, típica conduta de quem deseja chamar a atenção, pois a testemunha K.
narrou que o acusado – ao mesmo tempo que colocou fogo na camiseta – também
afastava a roupa de seu corpo, razão pela qual sequer chegou a sofrer
queimaduras.
Portanto, conforme acima delineado, não
está bem demonstrado nos autos que houve animus necandi no agir do
acusado, havendo isto sim indícios de que sua intenção era somente a de forçar
a vítima a manter o relacionamento, situação que impede que o processo seja
remetido ao Tribunal do Júri para julgamento.
Isto porque, como se sabe, a
tentativa revela-se pelos atos praticados pelo agente; se ele apenas feriu a
vítima, mas se evidencia que tinha a intenção de matar, não se trata de lesão
corporal, mas de homicídio tentado (Ap. Crim. n. 34.174, de Concórdia, j.
26.03.1996).
Ora, embora exista prova material da prática
criminosa, não se extrai da prova dos autos que a intenção do acusado fosse a
de ceifar a vida da vítima, razão porque os indícios sobre a autoria neste
particular são de extrema fragilidade. Tais indícios foram suficientes apenas
para que a ação penal fosse deflagrada, bem como admitida a denúncia, mas não
para sustentar uma decisão de pronúncia e que levasse o acusado a ser julgado
pelo Tribunal do Júri.
É dizer que os elementos indiciários não foram
minimamente confirmados pela prova produzida no contraditório, o que me parece
necessário mesmo em se tratando de processo afeto ao Tribunal do Júri, ainda
que soberano quando se trate de crimes dolosos contra a vida.
Segundo apregoa o art. 414, do Código de Processo
Penal, [...] não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de
indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz, fundamentadamente,
impronunciará o acusado.
Cabe aqui aplicar, ainda, o art. 155 do Código de
Processo Penal, in verbis:
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre
apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo
fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na
investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
Assim, em uma análise sistemática dos dispositivos
citados, conclui-se que, mesmo que a decisão de pronúncia não implique em um
exame detalhado e aprofundado das provas, faz-se necessário que os elementos
probatórios que servem para fundamentar tal decisão tenham sido, ainda que
minimamente, colhidos na fase judicial, no escopo de corroborar as provas
produzidas na fase policial, em respeito ao princípio da ampla defesa e do
contraditório.
O doutrinador Guilherme de Souza Nucci aduz que:
[...] Apesar de ser a fase da pronúncia um mero juízo
de admissibilidade da acusação, que não exige certeza, mas apenas
"elementos suficientes para gerar dúvida razoável no espírito do
julgador", imperiosa a verificação acerca da autoria ou participação.
Ausente essa suficiência de indícios idôneos e convincentes, a melhor solução é
a impronúncia, vedando-se a remessa dos autos à apreciação do Tribunal do Júri (Código de processo penal
comentado, 8. ed. São Paulo: RT, 2008, p. 744/745).
A propósito, nossa Corte de Justiça já decidiu:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TRIBUNAL DO JÚRI.
PRONÚNCIA. ABORTO PROVOCADO POR TERCEIRO (ART. 125 DO CÓDIGO PENAL). RECURSO DA
DEFESA.
PRETENSA IMPRONÚNCIA POR AUSÊNCIA DE INDÍCIOS
SUFICIENTES DE AUTORIA. ELEMENTOS INFORMATIVOS COLHIDOS NA FASE INDICIÁRIA QUE,
POR SI SÓS, SÃO INAPTOS A DETERMINAR A RESPONSABILIDADE PENAL DO ACUSADO PELO
CRIME DESCRITO NA DENÚNCIA. OBSERVÂNCIA AO ART. 155 DO CPP. AUSÊNCIA DE PROVAS
PRODUZIDAS EM CONTRADITÓRIO JUDICIAL. INTELIGÊNCIA DO ART. 414 DO CPP.
IMPRONÚNCIA QUE SE IMPÕE.
RECURSO CONHECIDO E PROVIDO (Recurso Criminal n.
2010.017518-8, de Joinville, rela. Desa. Marli Mosimann Vargas, j. em
9/2/2011).
Ainda:
RECURSO DE APELAÇÃO. IMPRONÚNCIA. TENTATIVA DE
HOMICÍDIO QUALIFICADO PELO RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DAS VÍTIMAS (ART.
121, § 2º, INCISO IV, C/C ART. 14, INCISO II, AMBOS DO CÓDIGO PENAL). RECURSO
MINISTERIAL. PEDIDO DE PRONÚNCIA. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PROVAS
PRODUZIDAS SOB O CRIVO DO CONTRADITÓRIO (ART. 155, CAPUT, DO CÓDIGO DE PROCESSO
PENAL). CONJUNTO PROBATÓRIO ANÊMICO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
[...] o disposto no art. 155, caput, do CPP, é
plenamente aplicável à fase da pronúncia, não sendo possível, portanto, a
admissibilidade de sentença positiva de pronúncia, somente com base em indícios
apurados no inquérito, ainda que nesta fase vigore o princípio do in dubio pro
societate. (Apelação Criminal n. 2010.043233-2, de São Francisco do Sul, rel.
Desa. Salete Silva Sommariva, j. em 7/6/2011). (TJSC, Apelação Criminal n.
2012.023126-2, de Itajaí, rel. Des. José Everaldo Silva , j. 07-03-2013).
Do corpo deste acórdão, extrai-se:
[...]
Dessa forma, apesar de a sentença de pronúncia ser de
índole precária e provisória, esta deve possuir condições probatórias mínimas
para submeter o cidadão ao processo criminal perante o Tribunal do Júri, em
face das garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório (CF/88,
art. 5º, LV).
A propósito, o disposto no art. 155, caput, do CPP, é
plenamente aplicável à fase da pronúncia, não sendo possível, portanto, a
admissibilidade de sentença positiva de pronúncia, somente com base em indícios
apurados no inquérito, ainda que nesta fase vigore o princípio do in dubio pro
societate.
Assim sendo, o fato de os jurados decidirem por íntima
convicção, ou seja, sem fundamentar suas decisões, revela a razão para que a
apreciação do feito não seja submetida ao conselho de sentença com prova
exclusivamente inquisitorial, notadamente em face do raciocínio segundo o qual,
se o réu, uma vez julgado por um juiz togado, não pode ser condenado
exclusivamente por elementos constantes do inquérito policial, seria por demais
desarrazoado que tal fosse permitido com relação aos que são julgados pelos
juízes leigos.
Destarte, a prova produzida na fase policial somente
poderá ser utilizada para justificar a pronúncia quando aliada a algum outro
elemento produzido judicialmente, sob o crivo do contraditório. (Apelação
Criminal n. 2010.043233-2, de São Francisco do Sul, rel. Desa. Salete Silva
Sommariva, j. em 7/6/2011).
A fundamentação supra é por demais escorreita e por
isso mereceu ser transcrita, pois confere um enfoque constitucional ao
propalado princípio do in dubio pro societate, frequentemente invocado
quando se examinam os processos afetos ao Tribunal do Júri na fase da pronúncia
para submeter, quase que automaticamente ao julgamento plenário, aqueles que se
vejam denunciados por delitos dolosos contra a vida.
Detida análise do tema é feita por Aury Lopes Jr:
Questionamos, inicialmente, qual é a base
constitucional do in dubio pro societate?
Nenhuma. Não existe.
Por maior que seja o esforço discursivo em torno da
"soberania do júri", tal princípio não consegue dar conta dessa
missão. Não há como aceitar tal expansão da "soberania" a ponto de
negar a presunção constitucional de inocência. A soberania diz respeito à
competência e limites ao poder de revisar as decisões do júri. Nada tem a ver
com carga probatória.
Não se pode admitir que os juízes pactuem com
acusações infundadas, escondendo-se atrás de um princípio não recepcionado na
Constituição para, burocraticamente, pronunciar réus, enviando-lhes para o
Tribunal do Júri e desconsiderando o imenso risco que representa o julgamento
nesse complexo ritual judiciário. Também é um equívoco afirmar-se que, se não
fosse assim, a pronúncia já seria a "condenação" do réu. A pronúncia
é um juízo de probabilidade, não definitivo, até porque, após ela, quem efetivamente
julgará são os jurados, ou seja, é outro julgamento a partir de outros
elementos, essencialmente aqueles trazidos no debate em plenário. Portanto, a
pronúncia não vincula o julgamento, e deve o juiz evitar o imenso risco de
submeter alguém ao júri, quando não houver elementos probatórios suficientes
(verossimilhança) de autoria e materialidade. A dúvida razoável não pode
conduzir a pronúncia.
(...).
Para RANGEL o princípio do in dubio pro societate
"não é compatível com o Estado Democrático de Direito", onde a dúvida
não pode autorizar uma acusação, colocando uma pessoa no banco dos réus. (...)
O Ministério
Público, como defensor da ordem jurídica e dos direitos individuais e sociais
indisponíveis, não pode, com base na dúvida, manchar a dignidade da pessoa humana
e ameaçar a liberdade de locomoção com uma acusação penal.
GUSTAVO
BADARÓ,
explica que o art. 409 (atual 414) estabelece um critério de certeza: "o
juiz se convencer da existência de crime. Assim, se houver dúvida sobre se há
ou não prova da existência do crime, o acusado deve ser impronunciado. Já com
relação à autoria, o requisito legal não exige certeza, mas sim a probabilidade
da autoria delitiva: dever haver indícios suficientes de autoria. É claro que o
juiz não precisa ter certeza ou se convencer da autoria. Mas se estiver em
dúvida sobre se estão ou não presentes os indícios suficientes de autoria,
deverá impronunciar o acusado, por não ter sido atendido o requisito legal.
Aplica-se, pois, na pronúncia, o in dubio pro reo. (Direito Processual Penal,
9ª ed., Saraiva, 2012, p. 1001-2).
É dizer que no caso em mesa a sentença de pronúncia
teria que ser amparada, basicamente, na prova indiciária produzida na fase
investigativa. A prova oral carreada na fase judicial não contém qualquer
indicativo de que o acusado tenha agido no sentido de ceifar a vida da vítima,
tudo não passando, aparentemente, de uma discussão mais exacerbada envolvendo o
término do relacionamento, fato permeado por uma tentativa atabalhoada do
acusado de "praticar homicídio contra eu mesmo", conforme ele afirmou
em seu interrogatório.
O acusado seria levado a julgamento no Tribunal do
Júri com base em prova meramente indiciária, o que não se compatibiliza com os
princípios do contraditório e da ampla defesa preconizados na Constituição Federal
(art. 5º, LV),
farol que deve guiar toda e qualquer decisão judicial, mormente aquelas que
digam respeito à liberdade do indivíduo.
É caso, pois, de
impronúncia do acusado porque não se extrai dos autos indícios da prática de
outro delito que pudesse justificar uma eventual desclassificação, a teor do
que dispõe o art. 419 do Código de Processo Penal.
Isto posto, deixo de admitir a denúncia
para, em consequência, IMPRONUNCIAR o acusado C. E. S., tudo na
forma do art. 414, do Código de Processo Penal.
O bem apreendido às fls. 20, por
inservível, deve ser descartado após o trânsito em julgado dessa decisão.
Transitada em julgado, arquive-se.
Publique-se.
Registre-se.
Intimem-se.
Tubarão (SC), 7 de outubro de 2013.
Mauricio Fabiano Mortari
Juiz de Direito
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