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08/10/2013

Decisão de Impronúncia - A coisa está melhorando na qualidade. Parabéns Maurício Mortari

Autos n°
Ação: Ação Penal - Júri/Lei 11.340/2006
Autor:  Ministério Público do Estado de Santa Catarina
Acusado:





Vistos, etc.

O MINISTÉRIO PÚBLICO moveu a presente Ação Penal contra C.E.S., pela prática, em tese, do crime previsto no art. 121, § 2º, III, c/c o art. 14, II, todos do Código Penal, constando da denúncia que o acusado e a vítima B.N.A. mantiveram namoro por aproximadamente dois anos, sendo que após o término do relacionamento o acusado, inconformado com o rompimento, passou a atentar contra a integridade física e mental da vítima, passando a praticar atos configuradores de violência doméstica, culminando por tentar atear fogo em si e na própria vítima.
Assim, em data de 29 de janeiro de 2013, por volta das 23h45m, na residência da vítima, o denunciado, imbuído da intenção homicida, amarrou-a pelos braços e jogou-a deitada sobre a cama, momento em que, com diversos fósforos, ateou fogo na cama e no lençol, apenas não conseguindo incendiá-la porque a vítima passou a se mexer e derrubou a caixa de fósforos.
Na mesma oportunidade, demonstrando sua intenção homicida ao dizer que "iriam morrer juntos", o denunciado ateou fogo na sua própria camiseta, apenas não conseguindo a consumação de delito com a morte da vítima por fogo porque outro casal que havia chegado ao apartamento escutou os gritos da vítima e sentiu o cheiro de queimado que emanava do quarto.
Concluiu o Ministério Público, requerendo a citação do denunciado para se ver processado e, ao final, o encaminhamento do processo para julgamento perante o e. Tribunal do Júri.
A denúncia foi recebida e determinada a citação do acusado para responder a acusação no prazo estabelecido em lei (art. 406, do CPP). Na mesma oportunidade, foi revogada a prisão preventiva do acusado e aplicadas medidas protetivas e cautelares diversas da prisão (fls. 109/114).
Foi apresentada a defesa preliminar, bem como arroladas testemunhas (fls. 120/129).
Não se observado ser o caso de absolvição sumária (art. 397, ambos do CPP), foi designada audiência de instrução e julgamento, oportunidade em que foi colhida a prova oral com a inquirição da vítima, das testemunhas arroladas pelas partes e o interrogado o acusado (fls. 172), seguindo o processo para alegações finais.
Em suas derradeiras alegações o Ministério Público pugnou pela pronúncia, pois sustentou que as provas carreadas ao processo evidenciaram que o acusado agiu com a intenção de matar a vítima, somente não atingindo seu intento por circunstâncias alheias à sua vontade. Destacou que o uso de fogo configura o meio cruel, pugnando pela manutenção da qualificadora.
A defesa, na mesma oportunidade, manifestou-se no sentido da impronúncia do acusado, não havendo razões para submetê-lo a julgamento pelo Tribunal do Júri.
Postulou pela improcedência do pleito inicial, com a absolvição do acusado ou, de modo alternativo a impronúncia ou o afastamento da qualificadora. 
É O RELATÓRIO.
DECIDO.
Trata-se de ação penal pública incondicionada em que C. E. S. é acusado pela prática do delito de homicídio qualificado pelo meio cruel em sua modalidade tentada (art. 121, 2º, III, c/c o art. 14, II, ambos do Código Penal do Código Penal), delito este perpetrado contra B.N. do A.
Em sede de pronúncia, dispõe o art. 413 do CPP que o juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação.
Sobre a decisão de pronúncia, colhe-se da Lição de Eugênio Pacelli e Douglas Fischer:
A pronúncia é a decisão pela qual o juízo monocrático (ainda na fase do denominado judicium accusationis) verifica a existência de um juízo de probabilidade - e não de certeza - acerca da autoria ou participação do delito e de provas suficientes acerca da materialidade.
Trata-se de uma decisão interlocutória mista, tendo como efeito o encerramento da fase procedimental delimitada, que ainda é passível de impugnação mediante recurso em sentido estrito (diversamente do que - corretamente se deu - em relação à impronúncia e à absolvição sumária). Não tem eficácia de coisa julgada na medida em que não vincula o Tribunal do Júri, que poderá, por exemplo, até mesmo desclassificar o crime para outro que não incluído na sua competência, contudo, sujeita-se às peias da preclusão, quando então terá prosseguimento o rito.
Há entendimento jurisprudencial e doutrinário no sentido de que, nessa fase procedimental, a submissão ao Tribunal Popular decorreria do princípio do in dubio pro societate. Compreendemos que, num sistema orientado por uma Constituição garantista, não poderia em sua essência o princípio invocado servir como supedâneo para a submissão ao Tribunal Popular. De fato, a regra é a remessa para julgamento perante o juízo natural nessas circunstâncias (eventual dúvida). Mas não pelo in dubio pro societate. Parece-nos que esse é o fundamento preponderante: como regra, apenas o Tribunal do Júri é quem pode analisar e julgar os delitos dolosos contra a vida (também os conexos - art. 78, I, CPP). É dizer, o juiz natural para a apreciação dos delitos contra a vida é o Tribunal do Júri, a quem, como regra (salvo nas hipóteses de absolvição sumária ou desclassificação), deverá ser regularmente encaminhado o processo.
Na fase de pronúncia, exige-se do juiz unicamente o exame do material probatório produzido até então, especialmente para a comprovação da inexistência de qualquer das possibilidades legais de afastamento da competência ou então de absolvição sumária (situações estas em que, ao contrário da pronúncia, deverá haver convencimento judicial pleno) (Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. 4. Ed. Atlas: 2012, p. 848-849).
No caso dos autos, observo que a materialidade resulta unicamente do termo de exibição e apreensão de fls. 20, visto que a vítima não chegou a ser atingida em sua integridade física.
Quanto à autoria, observo que o acusado afirmou em seu interrogatório que foi até a casa da vítima no dia dos fatos, oportunidade em que tentou o suicídio ateando fogo em sua própria camiseta. Narrou que passaram a conversar sobre o término do relacionamento, sendo que diante da recusa de B. em continuarem juntos foi até a cozinha e apanhou uma caixa de fósforos, usando-os para atear fogo em sua camiseta. Negou que tenha amarrado a vítima ou que atentou contra a vida desta, afirmando que o fogo na cama teve início a partir do fogo em sua camiseta. Narrou que o fogo na cama foi apagado por ele próprio, reiterando que em nenhum momento a vítima correu risco de morrer.  Enfatizou que não tinha a intenção de matar a vítima, pois com o término do relacionamento sua intenção era tirar sua própria vida apenas, tanto que logo após deixar o presídio tentou mais uma vez o suicídio e que, por conta disso, vem submetendo-se a tratamento psicológico.  
Extrai-se do interrogatório do acusado a sua negativa sobre a intenção de matar a vítima com o uso de fogo, destacando que tentou na verdade o suicídio em face do inconformismo pelo término do relacionamento afetivo. 
A vítima confirmou em seu depoimento o modus operandi do acusado, declarando que estavam em vias de terminar o relacionamento. Disse que na noite dos fatos tiveram uma nova discussão a respeito do fim do relacionamento, quando então deixou claro ao então namorado que precisavam "dar um tempo". Foi nesse momento que, segundo a vítima, o acusado ateou fogo em sua própria camiseta, quando então ela ficou assustada e começou a gritar, motivando suas colegas de moradia a chamarem a polícia. Prosseguiu narrando que o acusado não chegou a amarrá-la na cama ou mesmo praticar qualquer agressão física, limitando-se apenas a segurá-la pelo braço quando perguntou se eles realmente não ficariam mais juntos. Além disso, amenizou ocorrências anteriores de supostas práticas de violência doméstica, afirmando que o acusado sempre foi uma pessoa calma.
Descrevendo a cena ocorrida naquela noite, a vítima voltou a afirmar que o acusado foi até a cozinha – após ela ter dito para darem "um tempo" – e no retorno trancou a porta do quarto, guardando a chave no bolso, mais uma vez questionando-a se ela iria mesmo deixá-lo. Diante a resposta positiva da vítima, o acusado então ateou fogo em sua camiseta dizendo que não conseguiria viver sem ela, relatando que neste momento o fogo da camiseta também atingiu a cama, mas que com as próprias mãos o acusado debelou o fogo, acrescentando a vítima que ele fez isso porque ela tem certeza "que ele não tinha intenção de botar fogo na minha casa" (gravação – 12m25s a 13m10s). Foi nesse momento que vieram em seu socorro a sua colega de moradia e seu namorado (K. e T.), os quais abriram a porta com outra chave e foi K. quem apagou o fogo na camiseta do acusado.
A vítima relatou que mesmo depois do fogo ter sido apagado o acusado continuou a insistir na manutenção do namoro, tendo inclusive segurado-a, e somente deixou o local após a intervenção de K.
Negou qualquer pressão do acusado ou de interposta pessoa visando a mudança de seu depoimento, bem como pela desnecessidade de medidas de proteção, atribuindo as divergências entre seu depoimento judicial e aquele prestado na fase policial ao nervosismo do momento em que este último foi tomado. Por fim, disse que em nenhum momento achou que o acusado tivesse realmente a intenção de tirar a sua vida.
Nota-se, claramente, a existência de sérias divergências entre o depoimento que a ofendida prestou na Delegacia de Polícia e aquele prestado em Juízo, eis que no primeiro o acusado foi pintado como um ser cruel que a amarrou na cama e tentou atear fogo no móvel com a vítima prostrada indefesa; em juízo a ofendida disse que ambos estavam nervosos e que durante a discussão sobre o fim do namoro o acusado ateou fogo em suas vestes com a intenção de praticar o suicídio, de sorte que o fogo na cama teve origem acidental, além do que em nenhum momento ela chegou a ser amarrada.
A testemunha T. M. S., colega de moradia da vítima, afirmou que naquela noite estava em casa, no seu quarto, em companhia de seu namorado. Disse ter ouvido uma discussão, indo até o quarto da vítima e indagado o que estava ocorrendo, e diante da afirmação de que estava tudo certo, ela retornou para seu quarto. Momentos depois ouviu a vítima gritar por socorro e sentiu um cheiro de queimado, quando então ela e seu namorado K. voltaram ao quarto da vítima e viram que a camiseta do acusado estava em chamas, havia alguns fósforos no chão e a vítima encontrava-se de pé mostrando-se bastante assustada. Narrou que em seguida o acusado foi até o banheiro e no chuveiro apagou as chamas, sendo que resolveram chamar a polícia porque a confusão era grande e também porque tinham medo que ele fizesse algo "contra ele mesmo". Na chegada da Polícia, localizaram o acusado na garagem do edifício e nesse local ele acabou sendo preso. A depoente não chegou a notar se o lençol ou o colchão estavam queimados, vendo apenas fósforos no chão. Descreveu que vítima disse "ele tentou me matar" e que, na mesma noite, o acusado disse "que se era para morrer, iam morrer juntos", mas salientou que todos estavam nervosos e que foi "tudo da boca prá fora".
Já K. S., namorado de T., assinalou que estavam com T. no apartamento e perceberam uma intensa discussão entre o acusado e a vítima, além de sentirem o cheiro de queimado. Viram que B. saiu do quarto, mas o acusado fez com que ela voltasse ao quarto. A discussão persistiu e diante disso o depoente resolveu intervir, quando então percebeu que a porta do quarto da vítima estava trancada. Com a chave do quarto de T. ele abriu a porta e viu que a camiseta do acusado estava pegando fogo, ao que B. deixou o local. O acusado dirigiu-se ao chuveiro para apagar o fogo em sua roupa, indo após para a garagem do prédio. Narrou que quando abriu a porta do quarto, tanto o acusado como a vítima estavam em pé, não chegando a ver fogo na cama ou no lençol, sequer vendo marcas de fogo na cama, vendo apenas fósforos caídos no chão. Não chegou a ver o acusado fazendo ameaças de morte contra a vítima, ouvindo a vítima gritar por socorro e usar a palavra fogo. Afirmou ter ajudado a apagar o fogo na camiseta, o que fez usando um balde com água.
O Policial Militar M. R. B., responsável pelo atendimento da ocorrência, aduziu que receberam um chamado em razão da prática de violência doméstica. Ao chegarem ao local encontraram a vítima na rua, tendo ela narrado que o namorado havia "tentado arrombar a porta" e que ele estava escondido na garagem, local onde de fato o encontraram. O acusado relatou que "estava doente" porque gostava muito da vítima, tendo esta comentado que o acusado havia tentado colocar fogo no colchão e em seu próprio corpo.
As testemunhas arroladas pela defesa nada viram sobre o ocorrido, sendo ouvidas apenas para destacar que o acusado é uma pessoa calma e que nunca o viram envolvido em alguma situação de conflito.    
Todos os depoimentos são encontrados no CD encartado às fls. 183.
Com efeito, emerge da prova judicial coligida nos autos indícios de que na noite dos fatos houve intensa discussão entre o acusado e a vítima. O relacionamento – então com aproximadamente dois anos de duração – já vinha desgastado e a vítima tentava colocar um fim no namoro, fato com o que o acusado não se conformava.
A denúncia, com esteio na prova indiciária, narra que o acusado tentou matar a vítima amarrando-a e colocando-a sobre a cama, colocando após fogo em suas vestes e na própria cama, com o que tanto ele como ela morreriam consumidos pelas chamas.  
No entanto, examinando com vagar a prova oral coligida na instrução do processo vê-se que não há elementos indiciários suficientes para sustentar a tese acusatória inicial, isto é, de que o acusado agiu com animus necandi ao atear fogo em suas vestes, mesmo sendo certo que a vítima estava no mesmo local, pois dimana da prova que o acusado agiu em rompante que visava exterminar sua vida, aparentemente motivado pelo fim do relacionamento.
Primeiro, cabe considerar que em nenhum momento a vítima esteve em efetivo perigo de vida, pois ela disse não ter sido amarrada na cama e também que o pequeno princípio de incêndio do lençol foi rapidamente controlado pelo próprio acusado, ficando claro para ela que o acusado apenas tentou o suicídio quando ateou fogo em suas vestes. A vítima disse que em nenhum momento chegou a ser ameaçada de morte, explicando que a divergência entre seu depoimento em juízo e aquele lançado na fase indiciária deveu-se ao fato de estar nervosa quando ouvida na Delegacia.
Ainda que seja possível que a vítima tenha atenuado o teor de seu depoimento visando preservar seu ex-namorado, não é menos verdade que as declarações das testemunhas T. e K. emprestam apoio ao que ela disse em juízo. Com efeito, tanto um como outro afirmaram que ao adentrar no quarto da vítima a viram de pé, nada mencionado acerca de estar ela amarrada sobre a cama. Viram apenas o acusado com as vestes em chamas e alguns fósforos no chão, não percebendo nenhuma marca de fogo na cama ou no lençol, de sorte que se o fogo no móvel tivesse sido intenso é certo que teriam percebido os vestígios e também teriam que atuar para apagar as chamas, o que não ocorreu.
Aparentemente – e não foi produzida prova pericial para demonstrar o contrário –, o fogo atingiu apenas a camiseta do acusado e disso conclui-se que o perigo criado foi apenas para ele, sobretudo porque houve rápida intervenção da T. e de K., bem como o próprio acusado apressou-se em ir até o chuveiro e extinguir as chamas, mostrando com isso que se arrependeu do potencial suicídio.
Ainda que o acusado tenha trancado a porta do quarto – e isso é incontroverso –, nota-se que T. e K. conseguiram abrir a porta usando uma outra chave, sendo que tudo ocorreu de modo muito rápido. É possível afirmar que se a vítima estivesse de fato amarrada sobre a cama, não haveria tempo hábil para que ela se soltasse antes da porta ser aberta. É particularidade que reforça a ideia no sentido de que a vítima foi além em seu depoimento extrajudicial, talvez premida pela violenta emoção que situações dessa natureza certamente causam ou mesmo por sentimento de vingança pessoal motivado pelas dificuldades que vinha encontrando para terminar o relacionamento com o acusado, pessoa sem maturidade suficiente para encarar o fim do namoro.
Após sopesar a prova oral produzida sob o crivo do contraditório, bem como avaliar à luz dessa prova o agir do acusado, prepondera a conclusão de que não houve na sua ação o dolo homicida, seja pela ineficácia do meio empregado, seja porque não visou atingir a vítima com o fogo, mas sim seu próprio corpo. Quisesse de fato atingir a vítima com o fogo, teria usado meios mais eficazes para atingir tal desiderato (usando algum líquido combustível, por exemplo) e realmente a prendido na cama, impedindo assim que ela pudesse reagir à sua investida.      
Cabe lembrar que o acusado foi até a casa da vítima aparentemente com o objetivo apenas de manter o relacionamento, sendo que a ideia de autoimolar-se veio apenas quando a vítima "pediu um tempo". Foi nesse momento que ele foi até a cozinha e trouxe consigo uma caixa de fósforos. Tratando-se de uma residência, seguro afirmar que o acusado poderia ter ido até a cozinha e apossado-se de uma faca para praticar o homicídio ou mesmo buscado algum líquido potencialmente inflamável, conduta sequer cogitada nos autos. Aparentemente, segundo sobressai da prova encartada, teve o acusado um acesso de fúria pela recusa da vítima em manter o namoro e com isso acabou colocando fogo em sua roupa, mas sem a intenção de letalidade no tocante à ofendida.
Recorde-se que bastou a intervenção da colega de apartamento da vítima e de seu namorado para que a conduta do acusado cessasse, pois ao chegarem ao local ele imediatamente seguiu para o chuveiro visando com isso debelar as chamas que consumiam sua camiseta. Parece, na verdade, típica conduta de quem deseja chamar a atenção, pois a testemunha K. narrou que o acusado – ao mesmo tempo que colocou fogo na camiseta – também afastava a roupa de seu corpo, razão pela qual sequer chegou a sofrer queimaduras.
Portanto, conforme acima delineado, não está bem demonstrado nos autos que houve animus necandi no agir do acusado, havendo isto sim indícios de que sua intenção era somente a de forçar a vítima a manter o relacionamento, situação que impede que o processo seja remetido ao Tribunal do Júri para julgamento.
Isto porque, como se sabe, a tentativa revela-se pelos atos praticados pelo agente; se ele apenas feriu a vítima, mas se evidencia que tinha a intenção de matar, não se trata de lesão corporal, mas de homicídio tentado (Ap. Crim. n. 34.174, de Concórdia, j. 26.03.1996).
Ora, embora exista prova material da prática criminosa, não se extrai da prova dos autos que a intenção do acusado fosse a de ceifar a vida da vítima, razão porque os indícios sobre a autoria neste particular são de extrema fragilidade. Tais indícios foram suficientes apenas para que a ação penal fosse deflagrada, bem como admitida a denúncia, mas não para sustentar uma decisão de pronúncia e que levasse o acusado a ser julgado pelo Tribunal do Júri.
É dizer que os elementos indiciários não foram minimamente confirmados pela prova produzida no contraditório, o que me parece necessário mesmo em se tratando de processo afeto ao Tribunal do Júri, ainda que soberano quando se trate de crimes dolosos contra a vida.
Segundo apregoa o art. 414, do Código de Processo Penal, [...] não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado.
Cabe aqui aplicar, ainda, o art. 155 do Código de Processo Penal, in verbis:
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
Assim, em uma análise sistemática dos dispositivos citados, conclui-se que, mesmo que a decisão de pronúncia não implique em um exame detalhado e aprofundado das provas, faz-se necessário que os elementos probatórios que servem para fundamentar tal decisão tenham sido, ainda que minimamente, colhidos na fase judicial, no escopo de corroborar as provas produzidas na fase policial, em respeito ao princípio da ampla defesa e do contraditório.
O doutrinador Guilherme de Souza Nucci aduz que:
[...] Apesar de ser a fase da pronúncia um mero juízo de admissibilidade da acusação, que não exige certeza, mas apenas "elementos suficientes para gerar dúvida razoável no espírito do julgador", imperiosa a verificação acerca da autoria ou participação. Ausente essa suficiência de indícios idôneos e convincentes, a melhor solução é a impronúncia, vedando-se a remessa dos autos à apreciação do Tribunal do Júri (Código de processo penal comentado, 8. ed. São Paulo: RT, 2008, p. 744/745).
A propósito, nossa Corte de Justiça já decidiu:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA. ABORTO PROVOCADO POR TERCEIRO (ART. 125 DO CÓDIGO PENAL). RECURSO DA DEFESA.
PRETENSA IMPRONÚNCIA POR AUSÊNCIA DE INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA. ELEMENTOS INFORMATIVOS COLHIDOS NA FASE INDICIÁRIA QUE, POR SI SÓS, SÃO INAPTOS A DETERMINAR A RESPONSABILIDADE PENAL DO ACUSADO PELO CRIME DESCRITO NA DENÚNCIA. OBSERVÂNCIA AO ART. 155 DO CPP. AUSÊNCIA DE PROVAS PRODUZIDAS EM CONTRADITÓRIO JUDICIAL. INTELIGÊNCIA DO ART. 414 DO CPP. IMPRONÚNCIA QUE SE IMPÕE.
RECURSO CONHECIDO E PROVIDO (Recurso Criminal n. 2010.017518-8, de Joinville, rela. Desa. Marli Mosimann Vargas, j. em 9/2/2011).
Ainda:
RECURSO DE APELAÇÃO. IMPRONÚNCIA. TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO PELO RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DAS VÍTIMAS (ART. 121, § 2º, INCISO IV, C/C ART. 14, INCISO II, AMBOS DO CÓDIGO PENAL). RECURSO MINISTERIAL. PEDIDO DE PRONÚNCIA. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PROVAS PRODUZIDAS SOB O CRIVO DO CONTRADITÓRIO (ART. 155, CAPUT, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL). CONJUNTO PROBATÓRIO ANÊMICO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
[...] o disposto no art. 155, caput, do CPP, é plenamente aplicável à fase da pronúncia, não sendo possível, portanto, a admissibilidade de sentença positiva de pronúncia, somente com base em indícios apurados no inquérito, ainda que nesta fase vigore o princípio do in dubio pro societate. (Apelação Criminal n. 2010.043233-2, de São Francisco do Sul, rel. Desa. Salete Silva Sommariva, j. em 7/6/2011). (TJSC, Apelação Criminal n. 2012.023126-2, de Itajaí, rel. Des. José Everaldo Silva , j. 07-03-2013).
Do corpo deste acórdão, extrai-se:
[...]
Dessa forma, apesar de a sentença de pronúncia ser de índole precária e provisória, esta deve possuir condições probatórias mínimas para submeter o cidadão ao processo criminal perante o Tribunal do Júri, em face das garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório (CF/88, art. 5º, LV).
A propósito, o disposto no art. 155, caput, do CPP, é plenamente aplicável à fase da pronúncia, não sendo possível, portanto, a admissibilidade de sentença positiva de pronúncia, somente com base em indícios apurados no inquérito, ainda que nesta fase vigore o princípio do in dubio pro societate.
Assim sendo, o fato de os jurados decidirem por íntima convicção, ou seja, sem fundamentar suas decisões, revela a razão para que a apreciação do feito não seja submetida ao conselho de sentença com prova exclusivamente inquisitorial, notadamente em face do raciocínio segundo o qual, se o réu, uma vez julgado por um juiz togado, não pode ser condenado exclusivamente por elementos constantes do inquérito policial, seria por demais desarrazoado que tal fosse permitido com relação aos que são julgados pelos juízes leigos.
Destarte, a prova produzida na fase policial somente poderá ser utilizada para justificar a pronúncia quando aliada a algum outro elemento produzido judicialmente, sob o crivo do contraditório. (Apelação Criminal n. 2010.043233-2, de São Francisco do Sul, rel. Desa. Salete Silva Sommariva, j. em 7/6/2011).
A fundamentação supra é por demais escorreita e por isso mereceu ser transcrita, pois confere um enfoque constitucional ao propalado princípio do in dubio pro societate, frequentemente invocado quando se examinam os processos afetos ao Tribunal do Júri na fase da pronúncia para submeter, quase que automaticamente ao julgamento plenário, aqueles que se vejam denunciados por delitos dolosos contra a vida.
Detida análise do tema é feita por Aury Lopes Jr:
Questionamos, inicialmente, qual é a base constitucional do in dubio pro societate?
Nenhuma. Não existe.
Por maior que seja o esforço discursivo em torno da "soberania do júri", tal princípio não consegue dar conta dessa missão. Não há como aceitar tal expansão da "soberania" a ponto de negar a presunção constitucional de inocência. A soberania diz respeito à competência e limites ao poder de revisar as decisões do júri. Nada tem a ver com carga probatória.
Não se pode admitir que os juízes pactuem com acusações infundadas, escondendo-se atrás de um princípio não recepcionado na Constituição para, burocraticamente, pronunciar réus, enviando-lhes para o Tribunal do Júri e desconsiderando o imenso risco que representa o julgamento nesse complexo ritual judiciário. Também é um equívoco afirmar-se que, se não fosse assim, a pronúncia já seria a "condenação" do réu. A pronúncia é um juízo de probabilidade, não definitivo, até porque, após ela, quem efetivamente julgará são os jurados, ou seja, é outro julgamento a partir de outros elementos, essencialmente aqueles trazidos no debate em plenário. Portanto, a pronúncia não vincula o julgamento, e deve o juiz evitar o imenso risco de submeter alguém ao júri, quando não houver elementos probatórios suficientes (verossimilhança) de autoria e materialidade. A dúvida razoável não pode conduzir a pronúncia.
(...).
Para RANGEL o princípio do in dubio pro societate "não é compatível com o Estado Democrático de Direito", onde a dúvida não pode autorizar uma acusação, colocando uma pessoa no banco dos réus. (...) O Ministério Público, como defensor da ordem jurídica e dos direitos individuais e sociais indisponíveis, não pode, com base na dúvida, manchar a dignidade da pessoa humana e ameaçar a liberdade de locomoção com uma acusação penal.
GUSTAVO BADARÓ, explica que o art. 409 (atual 414) estabelece um critério de certeza: "o juiz se convencer da existência de crime. Assim, se houver dúvida sobre se há ou não prova da existência do crime, o acusado deve ser impronunciado. Já com relação à autoria, o requisito legal não exige certeza, mas sim a probabilidade da autoria delitiva: dever haver indícios suficientes de autoria. É claro que o juiz não precisa ter certeza ou se convencer da autoria. Mas se estiver em dúvida sobre se estão ou não presentes os indícios suficientes de autoria, deverá impronunciar o acusado, por não ter sido atendido o requisito legal. Aplica-se, pois, na pronúncia, o in dubio pro reo. (Direito Processual Penal, 9ª ed., Saraiva, 2012, p. 1001-2).   
É dizer que no caso em mesa a sentença de pronúncia teria que ser amparada, basicamente, na prova indiciária produzida na fase investigativa. A prova oral carreada na fase judicial não contém qualquer indicativo de que o acusado tenha agido no sentido de ceifar a vida da vítima, tudo não passando, aparentemente, de uma discussão mais exacerbada envolvendo o término do relacionamento, fato permeado por uma tentativa atabalhoada do acusado de "praticar homicídio contra eu mesmo", conforme ele afirmou em seu interrogatório.
O acusado seria levado a julgamento no Tribunal do Júri com base em prova meramente indiciária, o que não se compatibiliza com os princípios do contraditório e da ampla defesa preconizados na Constituição Federal (art. 5º, LV), farol que deve guiar toda e qualquer decisão judicial, mormente aquelas que digam respeito à liberdade do indivíduo.
  É caso, pois, de impronúncia do acusado porque não se extrai dos autos indícios da prática de outro delito que pudesse justificar uma eventual desclassificação, a teor do que dispõe o art. 419 do Código de Processo Penal.
Isto posto, deixo de admitir a denúncia para, em consequência, IMPRONUNCIAR o acusado C. E. S., tudo na forma do art. 414, do Código de Processo Penal.
O bem apreendido às fls. 20, por inservível, deve ser descartado após o trânsito em julgado dessa decisão. 
Transitada em julgado, arquive-se
Publique-se.
Registre-se.
Intimem-se.

Tubarão (SC), 7 de outubro de 2013.




Mauricio Fabiano Mortari
Juiz de Direito


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