Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos

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Alexandre Morais da Rosa

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22/03/2010

Policiais e Truculência

Apelação Criminal n. 212/2004, de Joinville (JEC).
Relator: Juiz Alexandre Morais da Rosa.
ABORGAGEM POLICIAL - ACUSADO DE DESOBEDIÊNCIA E DESACATO - INEXISTÊNCIA DE CRIME - TRUCULÊNCIA POLICIAL CONFIGURADA - PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ACUSADA DESCONSIDERADAS - AGRESSÃO COM LESÕES CORPORAIS NO CONDUZIDO - RECURSO DEFENSIVO ACOLHIDO - ABSOLVIÇÃO DECRETADA.
É certo que os policiais militares enfrentam os momentos mais calorosos das abordagens sociais, sendo que estas devem atender aos preceitos Constitucionais, em especial a presunção de inocência, não se prestando, por básico, a arbitrariedades. Fauzi Hassan Choukr e Kai Ambos deixaram evidenciada a necessidade de uma convivência entre os Direitos Fundamentais e a atuação policial, sob pena de se legitimar a arbitrariedade, a truculência, os atos inconstitucionais praticados em nome da paz pública e com base nos distintivos. E este compromisso precisa ser efetivado, sob pena de se reeditar a barbárie em nome da lei.
Vistos, relatados e discutidos estes autos do Apelação Criminal n. 212/04, de Joinville (JE), onde figuram como apelantes LUIS AUGUSTO FERNANDES DOS SANTOS e o MINISTÉRIO PÚBLICO.
ACORDAM, em Quinta Turma de Recursos, por unanimidade rejeitar a preliminar suscitada pelo Ministério Público e, por maioria de votos (vencido o relator) dar provimento ao recurso da defesa e negar provimento ao recurso da acusação, para absolver o acusado por não constituir o fato infração penal (art. 386, III, CPP).
Custas na forma da lei.
I - RELATÓRIO
O representante ministerial em exercício perante a Comarca de Papanduva/SC, ofereceu denúncia em face de LUIS AUGUSTO FERNANDES DOS SANTOS, já devidamente qualificado, imputando-lhe a conduta delituosa descrita da seguinte forma na inicial peça acusatória:
"Por volta das 23 h e 35 min do dia 20-11-03, o denunciado e mais quatro colegas caminhavam pela Avenida Papa João XXIII, Bairro São Cristóvão, Papanduva, nas proximidades da oficina Blicar. Estavam todos de algazarra, cantando alto, além de LEANDRO VICENTE DE LIMA ter colocado no meio da pista uma placa de trânsito indicando desvio. Em ronda, a Polícia Militar passou pelo local, ao que LEANDRO gritou algo aos policiais, que então fizeram o contorno e abordaram os rapazes. Todos, exceto o denunciado, acataram a ordem de entrar em posição de revista [de frente para um muro]; para garantia da operação, o policial ROBERTO ESTEFANI colocou a mão no ombro do denunciado, tencionado deixá-lo na mesma posição que os demais. Nesse instante, com o propósito de desacatar o policial, o denunciado disse ao policial 'tire a mão de mim seus pés-de-porco' e fez um movimento brusco como se fosse socar o policial, que com uma mão baixou o braço do denunciado e com a outra desferiu um golpe que atingiu o denunciado no supercílio, provocando sangramento. No momento do golpe, o policial pode ter estado com o revólver na mão. De qualquer forma, atingido, o denunciado levou ambas as mãos ao rosto e deixou de representar perigo ao sucesso da revista que os policiais queriam fazer, sendo que restou detido. Além do policial ESTEFANI, estava presente o policial PEDRO KUMINEK. Lembra-se que 'pé-de-porco' é expressão tradicionalmente usada para referência pejorativa a Policiais Militares".
Assim agindo, entendeu o Ministério Público que teria o denunciado incorrido nas sanções do art. 331 do Código Penal. Concluiu requerendo o recebimento da denúncia e a citação do acusado; arrolou testemunhas e ao final pugnou pela sua condenação. Em seguida foi realizada audiência preliminar, onde foi ofertada a Transação Penal (art. 76, Lei n. 9.099/95), rejeitada pelo acusado, que afirmou ter sido vítima do policial Estefani e que em momento algum tentou agredi-lo, situação presenciada por diversas pessoas. Diante de tal afirmação, foi requerida a baixa dos autos para a oitiva de Sidnei Waizak, bem como para elaboração de laudo pericial tendente a verificar se as lesões sofridas pelo acusado podiam ter sido causadas pela coronha de um revólver.
Devidamente citado (fl. 44-verso), o acusado compareceu (acompanhado de advogado) à audiência de instrução e julgamento, onde lhe foi ratificada a oferta de Transação Penal, novamente rejeitada. Logo em seguida, a defesa ofereceu defesa preliminar. Recebida a denúncia, o Ministério Público ofertou-lhe a Suspensão Condicional do Processo (art. 89, Lei dos Juizados), também rechaçada. Foram tomados os depoimentos pessoais das vítimas e de todas testemunhas arroladas. Interrogado, o acusado reafirmou ter sido agredido por um dos policiais. Já nas alegações finais, a acusação ratificou os termos da denúncia e a defesa, por sua vez, pleiteou pela absolvição baseada na falta de prova de ocorrência do delito, e alternativamente na aplicação do princípio in dubio pro reo.
Ao sentenciar, o juízo monocrático julgou procedente a denúncia, condenando o réu (com base no art. 330, CP), ao cumprimento da pena privativa de liberdade de 15 dias de detenção (a ser cumprida inicialmente em regime aberto) e mais 10 dias-multa. Porém, foi-lhe substituída a pena corporal por pena restritiva de direitos (prestação pecuniária de 01 salário-mínimo). Inconformados, tanto a acusação quanto a defesa interpuseram recurso de apelação. O Ministério Público busca a condenação do acusado no art. 331 como também pela prática do delito descrito no art. 329, CP. Já a defesa, alega a atipicidade (fundada em farsa montada pelos policiais) e alternativamente, a aplicação do princípio In dubio pro reo. A tempo e modo, ambas as partes apresentaram contra-razões.
Em seguida, ascenderam os autos a esta Turma de Recursos, onde o representante ministerial (fls. 116/119) argüiu a incompetência constitucional e legal desse colegiado para a apreciação do presente recurso.
É o breve relato.
II - VOTO
1 - Recursos de apelação conhecidos, pois presentes em ambos, os pressupostos legais de admissibilidade (interesse, legitimidade, adequação, tempestividade e regularidade formal).
2 - Trata-se de ação penal pública incondicionada, onde se apura a responsabilidade criminal do acusado pelo crime descrito na denúncia (art. 331, CP).
3 - Alegou o representante ministerial em exercício perante este Juizado, a incompetência constitucional e legal desse colegiado para conhecer e julgar os recursos a ele remetidos. Contudo, arredo a preliminar suscitada. A estrutura dos Juizados Especiais foi criada pela Lei Complementar n. 77/93, anterior à Lei n. 9.099/95, tendo sido mantida a competência recursal das Turmas de Recursos, também para os processos criminais de competência dos Juizados Especiais, inexistindo violação à Constituição Estadual e/ou Federal. Já se fixou:
"Turma de Recursos. Criação amparada na Lei Complementar n. 77/93. Constitucionalidade. Tendo o Estado se antecipado à criação dos Juizados Especiais pela Lei n. 9.099/95, não se deve falar em inconstitucionalidade. Lei anterior que supre eventual lacuna existente. Competência reconhecida." (5ª TR - Joinville - Apelação Criminal n. 79/01, de Mafra, Relator Juiz Antônio Zoldan da Veiga).
4 - O representante ministerial apesar de concordar com a condenação imposta pelo juízo singular, busca ainda a majoração da condenação. Contudo, sua insurgência não pode prosperar. Não há na peça inicial acusatória qualquer pedido do Ministério Público neste sentido. Nem mesmo nas alegações finais argumentou desta forma. Ainda que se pudesse falar da aplicação, naquele momento processual, do art. 383, CPP (emendatio libelli), entendo ser impossível sua aplicação na Turma de Recursos, a uma porque inconstitucional neste grau (em face da surpresa) e, a duas, porque na realidade não restou tipificado o crime de resistência, nem nenhum outro. Verifica-se no depoimento prestado pelo policial Roberto Estefani, que este teve a simples impressão de que o acusado, ao se virar bruscamente, fosse o agredir, quando então desferiu-lhe um golpe. Neste ponto, importante transcrever seu depoimento (fls. 49/50):
"Que nesse instante todos os rapazes, com exceção do acusado, respeitaram a ordem para se colocar com as mãos no muro a fim de serem revistados; Que no momento em que o depoente colocou a mão no ombro do réu para que este se posicionasse como os demais, o mesmo disse 'pé-de-porco não coloca a mão em mim'; Que imediatamente em seguida o acusado se virou bruscamente dando a entender, pelo movimento, que iria agredir o depoente, razão porque desferiu um soco no mesmo; (...); Que depois disso o acusado respeitou as ordens". (grifei e sublinhei).
Da mesma forma, necessária também a transcrição do depoimento do policial Pedro Kuminek (fls. 47/48):
"Que nesse instante o acusado fez um movimento brusco com os braços dando a entender que iria agredir o policial; Que então o policial Estefani se esquivou do réu e o dominou, algemando-o". (grifei e sublinhei).
Assim, é certo que o acusado em momento algum resistiu à ordem, situação esta relatada pelos dois policiais envolvidos. Contudo, estranhamente, na fase policial, o soldado Pedro lavrou auto de Resistência à Prisão (fl. 06), onde certificou ter o réu investido com tapas contra o soldado Estefani. Porém, no depoimento acima, o soldado Estefani afirmou que logo após tê-lo agredido, o acusado passou a respeitar suas ordens como os demais.
Ainda que se aceitasse a tese da acusação (existência de fatos típicos) e os depoimentos dos policiais envolvidos, estaríamos no máximo (quem sabe), diante do crime descrito no art. 330, CP (desobediência). Na verdade, tais situações reforçam a tese defensiva de que tudo de fato não passou de uma grande armação para encobrir atos arbitrários. Por isto, afasto a tese de ocorrência do crime previsto no art. 329, CP.
5 - A defesa, por seu turno, funda seu apelo na atipicidade da conduta relatada em juízo, baseada numa armação montada pelos policiais que tiveram a finalidade de justificar suas condutas ilegais. Alternativamente, pleiteia a aplicação do princípio in dubio pro reo.
6 - Reconheço que os policiais militares enfrentam os momentos mais calorosos das abordagens sociais, sendo que estas devem atender aos preceitos Constitucionais, em especial a presunção de inocência, não se prestando, por básico, a arbitrariedades. Fauzi Hassan Choukr e Kai Ambos (Polícia e Estado de Direito na América Latina. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004) deixaram evidenciada a necessidade de uma convivência entre os Direitos Fundamentais e a atuação policial, sob pena de se legitimar a arbitrariedade, a truculência, os atos inconstitucionais praticados em nome da paz pública e com base nos distintivos. E este compromisso precisa ser efetivado, sob pena de se reeditar casos como o presente. Neste pensar, Cyro Marcos da Silva (Entre autos e mundos. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, págs. 58-59) advertiu em palestras aos Policiais: "Os policiais têm as leis às quais todos nós estamos submetidos; têm ainda regulamentos que lhes são próprios em suas atividades. Porém, não podem perder de vista uma outra lei: uma lei básica, fundamental, portadora de uma verdade velada, impossível de se saber muito dela. É preciso que não percam de vista que as leis em nome das quais vocês detêm, prendem, averiguam, encarceram, devem estar eticamente referidas a esta Lei fundante que lhes impede de se posicionarem como os donos da verdade, não desrespeitando assim a particularidade de cada sujeito com o qual vocês se deparam nas perigosas paragens onde exercem seu ofício. Leis inevitáveis, como diria Antigona. (....) Não pode encarnar esta Lei, fazendo-se todo-poderoso. Isto seria uma falácia."
Importante também destacar (porque descrevem situações praticamente semelhantes ao do presente caso), algumas notícias sobre a violência policial aqui no Brasil. Assim, colaciono parte de texto publicado pela revista Época que enfatiza:
"O relatório anual 'Direitos Humanos no Brasil 2002', divulgado nesta terça-feira na Assembléia Legislativa de São Paulo pelo Centro de Justiça Global, mostra que a violência de policiais contra a sociedade civil aumentou em São Paulo e no Rio de Janeiro com relação ao ano passado. Em São Paulo, 703 pessoas foram mortas por policiais entre janeiro e outubro, o mesmo número de casos registrados durante todo o ano passado. Segundo o relatório, no Rio de Janeiro a média mensal de mortos pela policia entre janeiro e agosto chegou a 72,6%, o que representa um aumento de 47,3% em relação ao mesmo período do ano passado. O relatório mostra também que a polícia brasileira é uma das mais violentas do mundo. Enquanto a polícia de Los Angeles foi responsável por 18 homicídios de civis no ano passado, a polícia de São Paulo matou 703 pessoas no mesmo período. Além disso, o documento divulga que muitos casos de homicídios cometidos por policiais são registrados como auto de resistência ou resistência seguida de morte quando na verdade tratam-se de execuções sumárias.
Da mesma forma, trago a esta sentença, pequena parte de entrevista também veiculada pela Revista Época, com a socióloga Julita Lemgruber (ex-ouvidora da polícia do Rio de Janeiro), que afirma que "a polícia é violenta, corrupta e as mortes em confronto são uma farsa. Ressaltam o emblemático caso do recém-formado dentista Flávio Ferreira Sant'Ana, assassinado por policiais militares que o confundiram com um assaltante:
"Na semana passada foi registrado mais um caso de assassinato de inocente envolvendo seis policiais militares paulistas. Desta vez, o dentista Flávio Ferreira Sant'Ana, de 28 anos, caiu morto com dois tiros disparados pelos oficiais. Foi confundido com um ladrão, e os agentes seguiram o famoso procedimento de 'atirar primeiro, perguntar depois'. Caído no chão, Flávio não foi reconhecido pela vítima do roubo. Os policiais militares ainda tentaram incriminar o dentista, colocando em seu bolso a carteira da vítima - que foi ameaçada para não revelar a execução. Presos, os PMs alegaram que Flávio estava armado e reagiu, embora a perícia tenha derrubado esse argumento. (...).'O caso de Flávio é exemplar. Revela o viés racista que está embutido no trabalho da polícia', afirma Julita."
E ainda, o texto assinado pelo Centro de Justiça Global:
"Nos últimos dez anos, 6.672 pessoas foram mortas em ações da polícia militar no Estado de São Paulo. A média de pessoas mortas pela polícia de São Paulo no primeiro semestre de 2000 foi de uma a cada 9 horas, o que representa quase três homicídios por dia. Estatísticas da Ouvidoria de Polícia do Estado de São Paulo apontam que cerca de 60% das pessoas mortas pela Polícia Militar não tinham antecedentes criminais. Essa é uma média que vem se mantendo constante nos últimos quatro anos. Entre os homicídios, 52,6% ocorreram com tiros pelas costas e 55,8% das pessoas atingidas não estavam em flagrante delito. A pesquisa também indicou que 43,5% das 193 ocorrências não tiveram testemunhas e que 45,9% das vítimas eram jovens entre 18 e 25 anos. Os outros 11% eram menores de idade (...). Uma pesquisa realizada pelo pesquisador do ISER, Ignácio Cano, apresentado na conferência anual da ANPOCS revela que negros e pardos envolvidos em confrontos com a polícia do Rio de Janeiro morrem mais do que brancos na mesma situação. Os registros apontam que entre os mortos, os negros e pardos são 70,2%, e os brancos representam 29,8%". (grifei e sublinhei).
Por isto que a tese defensiva precisa ser acolhida. A leitura atenta dos elementos probatórios deixa antever que a abordagem policial, dita de rotina, consistente em alinhar cidadãos da República, com presunção de inocência, foi incrementada com uma truculência incompatível com o Estado Democrático de Direito. As notícias de violência policial transpassaram o silêncio que o Judiciário sempre lhes reservou, depositando uma confiança exacerbada e insustentável em policiais somente pelo fato de estarem fardados. É preciso mais. É necessário que a versão trazida pelos agentes públicos, com presunção de validade, reconheço, seja conjugada com elementos probatórios críveis, inexistentes no caso.
Não se pode aceitar, assim, como normal, a nociva prática utilizada pela Polícia Militar de emparedar toda e qualquer pessoa, classificando discricionariamente os potenciais suspeitos, via estigmas (Carlos Roberto Bacila. Estigmas: um estudo sobre os preconceitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005), posto que violadora dos direitos constitucionais da presunção do estado de inocência (art. 5º, LVII, CR) e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR). Tal prática é rotineira, conforme se observa com freqüência nos processos penais. Nestes autos é confirmada pelos policiais envolvidos (fls. 47/49), nos termos do regime de verdade construído.
7 - Verifica-se também que ao sentenciar, o magistrado de 1º grau, simplesmente ignorou os depoimentos das testemunhas que afirmaram (uníssonas) que o acusado não agrediu o policial, muito menos o desacatou. Baseou-se, única e exclusivamente nos depoimentos pessoais das supostas vítimas, com manifesto interesse em legalizar o ilegal. Os próprios policiais afirmaram em juízo (apesar de terem alegado situações diversas na fase policial), que pensaram que o acusado iria agredir o policial Estefani, quando este então atacou violentamente o acusado (a grande vítima dos fatos narrados na inicial).
8 - Apesar de os atos praticados pelos policiais militares estarem revestidos de presunção legal, há de ser relembrado que estamos diante de presunção relativa (jure tantun), plenamente possível de ser desconstituída por prova em contrário. Diante disto e das provas constantes dos autos, a inexistência do suposto crime descrito na denúncia, restou indubitável. Neste ponto, inafastável as vetustas lições de Beccaria, que em meados do séc. XVIII, já se preocupava com questões tão importantes (Dos Delitos e das Penas. Bauru: EDIPRO, 2000, págs. 28-29): "Todo homem razoável, isto é, todo homem que tiver certa coordenação em suas idéias e que experimentar as mesmas sensações que os outros, poderá ser recebido em testemunho. Mas, a confiança que se lhe der, deve medir-se pelo interesse que ele tem de dizer ou não a verdade" (...). Disse eu que se podia admitir em testemunho toda pessoa que não tem nenhum interesse em mentir. Deve, pois, conceder-se à testemunha mais ou menos confiança, à proporção do ódio ou amizade que ela tem ao acusado e de outras relações mais ou menos estreitas que ambos mantenham." (grifei e sublinhei). Isto basta.
9 - Também congruente com a tese utilizada pela defesa, verifico que o Laudo Pericial (fl. 36) atesta a possibilidade das lesões sofridas pelo acusado terem sido "causadas por revólver, qualquer objeto sólido (madeira ou pedra), ou ainda por soco desferido com muita força, não sendo possível precisar qual instrumento específico utilizado, devido ser lesão de natureza leve". Assim, verifica-se que o ferimento sofrido pelo réu pode de fato ter sido causado pela coronha da arma do policial Roberto Estefani (o que reforça a tese da agressão sem razão democrática). Se referido laudo tivesse afastado tal possibilidade, arredada também estaria a tese defensiva utilizada. Portanto, no mínimo pelo benefício da dúvida, deveria ter o juízo a quo admitido a defesa e absolvido o acusado (art. 386, VI, CPP).
10 - Importante ainda também ressaltar o depoimento prestado pelo policial Pedro Kuminek, que afirma (fl. 48):
"Que os motoristas de dois ou três veículos comunicaram ao depoente que havia um grupo de rapazes que estavam quebrando placas e promovendo desordens; Que isto ocorreu depois da abordagem dos rapazes, pois acredita que as pessoas não sabiam que a diligência já havia sido efetuada". (grifei e sublinhei).
No depoimento acima, verifica-se que o policial Pedro informou que, mesmo após já terem concluído a desastrada operação policial (que culminou com a prisão do acusado), ainda assim continuavam a receber informações de alguns motoristas que alguns rapazes estavam quebrando placas e promovendo desordens naquela cidade. Nota-se também que a afirmação feita pelo policial de que referidos motoristas não sabiam que a operação já havia sido efetuada, partiu dele próprio. Portanto, nada comprova sua alegação de que os autores das diversas reclamações feitas por moradores (sobre arruaças e bagunças) fossem os jovens abordados anteriormente (entre os quais estava o acusado). Como poderiam vários moradores ainda estarem reclamando sobre arruaças e bagunças feitas pelo acusado e seus colegas, se a polícia já os havia abordado? Dito de outra forma, não há provas concretas de que os rapazes abordados fossem os autores da bagunça relatada por diversos motoristas. Novamente, a dúvida reforça a tese das ilegalidades e arbitrariedades praticadas, e que em momento algum autorizava os policiais militares a agirem da forma como agiram. Ademais, onde estão as placas quebradas? Isto também seria crime! Mas não, a justificativa da truculência policial já estava montada, não se precisou das placas intrusas.
11 - É sabido que em sede de processo criminal, para a condenação é imprescindível a certeza, fundada em elementos de convicção sólidos e inabaláveis que evidenciem a materialidade, autoria e culpabilidade. Ou seja, meras conjecturas não são suficientes para ensejar a prolação de um decreto condenatório. Portanto, se não existe prova inequívoca de que o acusado tenha se portado como afirmado na denúncia, mas justamente o contrário, a absolvição com base no art. 386, III, CPP é imperativa: não há conduta criminosa, pelo menos dele.
III - DECISÃO:
À unanimidade, em Quinta Turma de Recursos, rejeitar a preliminar suscitada pelo Ministério Público e, por maioria de votos (vencido o relator), dar provimento ao recurso da defesa e negar provimento ao recurso da acusação, para absolver o acusado por não constituir o fato infração penal (art. 386, III, CPP). Custas na forma da lei.
Participou do julgamento, com voto vencido em parte, o Excelentíssimo Relator Juiz Otávio José Minatto.
Joinville, 22 de agosto de 2005.
ANTÔNIO ZOLDAN DA VEIGA
Presidente c/ voto
ALEXANDRE MORAIS DA ROSA
Relator Designado

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