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06/12/2009

Zk. Timm e Canudos


www.unisinos.br/blog/ppgdireito

Dez|5

Três lições sobre Canudos

Foto: Mulheres e crianças prisioneiras da guerra de Canudos.

Creio que um bom alerta ao entusiasmo que nutrimos pela construção de uma verdadeira República no Brasil é a lembrança de Canudos: o marco simbólico e sangrento da fundação da República brasileira. Euclides da Cunha, mais do que ninguém, expressou a desilusão com a nova etapa republicana que se iniciava, e o fez em seu magistral livro “Os Sertões”. O próprio livro, em sua linguagem, inicialmente descritiva, métrica, medida, científica, aos poucos vai dando lugar ao espanto mudo, cada vez mais solto entre as descrições da luta e das inúmeras campanhas do Exército brasileiro para, a muito custo, derrotar camponeses, mulheres, velhos e crianças.

Um dos textos mais lindos e emocionantes que eu já li sobre Canudos chama-se “Três lições sobre Canudos em seu centenário”, e foi escrito pelo Prof. Ricardo Timm de Souza, integrando o seu livro “Em torno à diferença – as aventuras da alteridade na complexidade da cultura contemporânea”, publicado pela Editora Lumen Juris no ano passado. Segundo o Timm me contou, ele escreveu este texto em 1993, ano do centenário de Canudos, e o fez a pedido dos seus então anfitriões na Alemanha. Distante espacial e cronologicamente Ricardo Timm conseguiu penetrar no âmago da trajetória histórica brasileira, das suas lutas e injustiças, muitas vezes dissimuladas por discursos condecendentes com a violência “civilizada”. Creio, ainda, que o texto situa de modo preciso e profundo o lugar da memória e da alteridade no contexto do Brasil. Como afirma o Timm em seu texto: “Canudos nunca esteve tão vivo quanto hoje” (ZK, 05/12/2009).

O líder messiânico sertanejo Antônio Conselheiro, nascido em 1828, estabelece-se em 1893 na antiga fazenda de Canudos, no interior da Bahia, Brasil, e funda a Comunidade de Canudos, juntamente com alguns de seus seguidores fiéis. Estava lançada a semente de um movimento que viria a desabrochar em um dos mais bem sucedidos empreendimentos “utópicos” da história, até sua aniquilação em 1897. Temos a intenção, neste texto, não de analisar em detalhe o exato desenrolar histórico dos fatos, ou a descrição psicológica ou a análise sociológica de Conselheiro e sua gente, e sim, de tentar reencontrar a semente utópica lançada naqueles tempos em terra agreste, em sua realidade própria e em seu urgente testamento vivo.

A- O panorama

Os frutos do sistema colonialista inicial das terras do nordeste brasileiro já estavam, na segunda metade do século XIX, perfeitamente maduros. A progressiva aniquilação, depois de três séculos, das populações indígenas como tais e a degeneração de seu sistema social original haviam conduzido seus descendentes à miscigenação e à condição de miséria em um mundo totalmente dominado pela fúria selvagem dos exploradores poderosos da ainda nova terra. Também os negros escravos já haviam atingido o ápice de sua miséria; sua progressiva “libertação” não significava mais do que o atestar de sua progressiva inutilidade em um modelo econômico obsoleto que, já com os dias contados, se preparava para ceder lugar a um sistema mais moderno, um embrião capitalista, onde não haveria mais lugar para escravos, e sim para proletários. As camadas brancas baixas, os pobres e dependentes dos senhores, não podem ser esquecidos: também eles, em um processo de miscigenação racial, cultural e social, vinham contribuindo para conformar a cor característica do interior nordestino – uma cada vez maior massa de deserdados da sorte, fustigados pelas condições climáticas adversas e explorados ao extremo por uma elite de “coronéis” cujo único objetivo sempre foi o acúmulo de poder e dinheiro. A igreja católica, por seu lado, se aprestava em abençoar o status quo, concentrando todo seu poder de influência no exercício de obras caritativas.

B- Os inícios

O espetáculo da indigência das condições sociais de sua gente não passou despercebido à viva inteligência do jovem Antonio Vicente Mendes Maciel, futuro Antônio Conselheiro. Reuniu uma cultura incomum para a época e o meio, enquanto assistia às selvagens desavenças entre sua família e uma família inimiga. Exerceu várias profissões, entre as quais a que lhe permitiria ser chamado de “advogado dos pobres”. Tinha como característica de caráter o “não poder ver uma injustiça sem protestar”. Com esta motivação ética inicial, armado de leituras entre as quais se encontravam a do Evangelho e, provavelmente, a da Utopia de Thomas Morus, principia sua pregação. Esta pregação consistia em mostrar a seus ouvintes o descompasso entre o mundo real, no qual viviam, cuja essência consistia na injustiça, e a possibilidade também real de um mundo que teria por base a edificação efetiva da justiça. Iniciou assim a conquista do coração de populações dispostas a segui-lo; viajou, foi perseguido, não só pelos senhores poderosos, seus inimigos óbvios e naturais, como também pela igreja cujos Evangelhos pregava. Seu movimento cresceu – cada vez mais gente via em sua mensagem um sentido para viver e lutar. Funda assim, com seus seguidores, a Comunidade de Canudos, que atrairia cada vez mais membros, e onde reinava a realização prática da justiça e de uma convivência humana verdadeira, nos moldes de um sadio “comunismo” primitivo, baseado no amor e na valorização do ser humano. Inclusive daqueles seres humanos que, no mundo normal, não são considerados e tratados senão como o lixo da história. Estava se realizando uma pequena, mas viva utopia.

C- O fim

Este foco de irritação na totalidade do mundo colonial não poderia naturalmente passar despercebido. Pela primeira vez era possível ver claramente, na paisagem ressequida do sertão nordestino, um desafio vivo, comunitário, ao ressecamento natural das almas dos exploradores. A inquietação cresce. Traições e perfídias se sucedem, maquinações políticas, ressentimentos e ódios, nos quais não se podia vislumbrar nenhum fundamento racional, mas que nem por isso deixavam de ser, por sua vez, verdadeiros e poderosos. Tudo isto desemboca na essência constitutiva daquele mundo social violento e injusto: a força bruta. Expedições de destruição, comandadas por valentes coronéis, bravos tenentes, destemidos majores e até heróicos generais se sucedem, sem êxito. Os heroísmos militares não conseguem, inicialmente, triunfar sobre uma horda de miseráveis, homens, mulheres e crianças que acreditam no que vivem.

Mas a lógica da totalidade é pertinaz. Finalmente é arrasada a comunidade de Canudos, são trucidados os últimos indefesos, cabeças são cortadas (inclusive a de Conselheiro, enviada para a capital, na esperança de que anatomistas descobrissem a estranha patologia de que sofria aquele homem que teve coragem de ver no futuro a possibilidade de um mundo mais humano), e uma barragem cobre os escombros, na ingênua esperança de que as águas extirpassem dos corações a esperança e a crença em mundo melhor. A presença física de Canudos não existia mais, mas sua indelével existência ética, escrita e circunscrita por uma parcela da história, está pronta para ser sempre re-descoberta em suas muitas lições, especialmente nos tempos que correm, nos extremos de um mundo de sofrimento que se debate em meio à nuvem ideológica de um anunciado “fim da história”. Nunca se precisou tanto de Canudos como hoje – e isto significa: Canudos nunca esteve tão vivo como hoje. Destaquemos aqui três aspectos desta vida, três lições de Canudos que se oferecem ao presente:

D- A primeira lição de Canudos: a realidade está prenhe de mundos novos – basta levar a sério a possibilidade de criá-los

Antônio Conselheiro não brincava com ilusões à frente de seu povo; só a realidade, a presente e aquela que ainda estava para ser construída, tinha lugar em suas prédicas. O mundo é o mundo em que se vive; ali principia o futuro. A visão da essência da realidade vigente – a injustiça – pode conduzir à essência da realidade possível: um mundo ético. Aqui, não se brinca com fantasias e ilusões, não se enfeitiça as esperanças: leva-se a esperança a sério, não se perde tempo com o vácuo entre o que existe e o que pode vir a existir. A realidade é construção, construção do futuro sobre os alicerces do momento em que se vive. E o momento presente é eterno, pode ser eternizado como primeiro passo ético, está à espera de sua sempre possível eternidade, de sua inscrição em um futuro diferente. A utopia tornada realidade é mais forte do que qualquer realidade presente e corroborada, tornada estática, porque seu sentido não é, como muitas vezes se pensa, o que não existe, mas sim o que ainda não existe e vibra no próximo momento, oferecendo sua existência possível no dinamismo da abertura do futuro.

Canudos possuiu realidade plena.

E- Segunda lição de Canudos: nem em todo lugar se encontra um Antônio Conselheiro, mas em todo lugar se pode encontrar aquilo em que ele acreditava, até mesmo na memória de um povo

Canudos suscitou reações, e estas reações não se deveram somente a um élan messiânico feito serviço. Muitos viram em Canudos seus sonhos mais inconscientes, suas fantasias mais impossíveis e recalcadas, suas mais tresloucadas esperanças em processo de realização. As sementes da utopia podem ser encontradas em todo lugar: sempre há quem as reconheça. No desenrolar de uma História mal-escrita, nos momentos de liberdade, nas grandes vivências da humanidade e nas pequenas vivências de cada um – na memória que precisa ser vitalizada pela sua presença no presente: há sempre espaço suficiente para a transformação do mundo nas energias que não são esquecidas.

A história de um mundo melhor é também a história de um reencontro: o reencontro de um povo com seu sofrimento, com seus sonhos mais profundos, com suas esperanças mutiladas, com sua memória viva.

F- Terceira lição de Canudos: a utopia não pode ser destruída, pois ela é o valor mais íntimo do ser humano, inclusive dos últimos entre os últimos

A água sobre Canudos não afogou Canudos. Canudos está presente em cada criancinha que nasce, em cada menino de rua, em cada trabalhador explorado, em cada mulher violentada pelas pequenas e grandes violências do mundo, em cada velho que, por não servir mais a um sistema, é abandonado à sua miséria terminal. Canudos não é um lugar, é uma essência, uma interioridade da alma, que pulsa no ritmo da carne que vive e sofre, também da que nasce envolta em plástico e cores como na que estremece em trapos e sujeira. Canudos está vivo na biologia violentada de um estômago que nunca conheceu a saciedade, de um cérebro que nunca experimentou a possibilidade de crescer sem se atrofiar, de um coração que nunca viu a solidariedade. Nos restos da história vive Canudos, no que sobra da totalidade saciada, no que não existe mais pela ação do poder e do dinheiro. “Canudos não se rendeu”. Esta constatação de Euclides da Cunha é a constatação de uma verdade eterna: não há força que extirpe do coração humano a sede de justiça e o anseio da paz; nenhuma totalidade conseguirá jamais neutralizar a chama de um futuro ético.

“Canudos não se rendeu”.

(Ricardo Timm de Souza – Freiburg-im-Breisgau, setembro de 1993).

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