Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos

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22/03/2014

“O CONTROLE DIFUSO ABSTRATIVIZADO”, A PROGRESSÃO DE REGIME NOS CRIMES HEDIONDOS E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: FINALMENTE A NOVELA CHEGOU AO SEU FINAL[1]

“O CONTROLE DIFUSO ABSTRATIVIZADO”, A PROGRESSÃO DE REGIME NOS CRIMES HEDIONDOS E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: FINALMENTE A NOVELA CHEGOU AO SEU FINAL[1]


Finalmente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu, na sessão do dia 20 de março de 2013, o julgamento da Reclamação nº. 4335, na qual a Defensoria Pública da União questionou decisão do juízo da Vara de Execuções Penais de Rio Branco que negou a dez condenados por crimes hediondos o direito à progressão de regime prisional.
A Corte Suprema havia já reconhecido a possibilidade de progressão de regime nesses casos no julgamento do Habeas Corpus nº. 82959, em fevereiro de 2006, por seis votos contra cinco, quando foi declarado inconstitucional o § 1º. do art. 2º. da Lei nº. 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos), que então proibia tal progressão (mais tarde alterado pela Lei nº. 11.464/2007). No caso específico da Reclamação nº. 4335, no entanto, o Juiz de Direito do Acre alegou que, para que a decisão do Supremo Tribunal Federal no referido Habeas Corpus tivesse efeito erga omnes (ou seja, alcançasse todos os cidadãos), seria necessário que o Senado Federal suspendesse a execução do dispositivo da Lei de Crimes Hediondos, conforme prevê o artigo 52, X, da Constituição Federal, o que não havia ocorrido.
Na sessão deste dia 20 de março, o julgamento foi concluído após voto-vista do Ministro Teori Zavascki, cujo entendimento foi seguido pelos Ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Celso de Mello. Em seu voto, o Ministro Teori salientou que, embora o artigo 52, X, da Constituição estabeleça que o Senado deve suspender a execução de dispositivo legal ou da íntegra de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo, as decisões da Corte, ao longo dos anos, têm-se revestido de eficácia expansiva, mesmo quando tomadas em controvérsias de índole individual. O Ministro também citou as importantes mudanças decorrentes da Reforma do Judiciário (EC 45/2004), a qual permitiu à Corte editar súmulas vinculantes e filtrar, por meio do instituto da repercussão geral, as controvérsias que deve julgar. “É inegável que, atualmente, a força expansiva das decisões do STF, mesmo quando tomadas em casos concretos, não decorre apenas e tão somente da resolução do Senado, nas hipóteses do artigo 52, inciso X, da Constituição”, afirmou. O fenômeno, segundo o Ministro, “está se universalizando por força de todo um conjunto normativo constitucional e infraconstitucional direcionado a conferir racionalidade e efetividade às decisões dos Tribunais Superiores e especialmente à Suprema Corte”.
Para o Ministro, contudo, é necessário dar interpretação restritiva às competências originárias do Supremo, pois o uso indistinto da reclamação poderia transformar o Tribunal em “verdadeira corte executiva”, levando à supressão de instâncias locais e atraindo competências próprias de instâncias ordinárias. No caso em análise, entretanto, o Ministro Teori acolheu a Reclamação nº. 4335 por violação à Súmula Vinculante nº. 26 (“para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990”). Embora a reclamação tenha sido ajuizada mais de três anos antes da edição da súmula, a aprovação do verbete constitui, segundo o Ministro, fato superveniente, ocorrido no curso do julgamento do processo, que não pode ser desconsiderado pelo Juiz de Direito, nos termos do artigo 462 do Código de Processo Civil.
Nesta Reclamação, os Ministros Sepúlveda Pertence (aposentado), Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio julgavam inviável a Reclamação (não conheciam), mas, de ofício, concediam Habeas Corpus para que os dez condenados tivessem seus pedidos de progressão do regime analisados, individualmente, pelo juiz da Vara de Execuções Criminais. Os votos dos Ministros Gilmar Mendes (relator) e Eros Grau (aposentado) somaram-se aos proferidos na sessão do dia 20, no sentido da procedência da reclamação. Para ambos, a regra constitucional que remete ao Senado a suspensão da execução de dispositivo legal ou de toda lei declarada inconstitucional pelo Supremo tem efeito de publicidade, pois as decisões da Corte sobre a inconstitucionalidade de leis têm eficácia normativa, mesmo que tomadas em ações de controle difuso.
Esta verdadeira “novela mexicana” iniciou-se em fevereiro de 2006 quando, por seis votos a cinco, os Ministros declararam a inconstitucionalidade do dispositivo da Lei dos Crimes Hediondos que proibia a progressão do regime de cumprimento da pena (já alterado pela lei acima referida). Mas como a decisão foi tomada por meio de um Habeas Corpus, o Juiz da Vara de Execuções considerou que ela só teve efeito imediato para as partes envolvidas no processo. Para ele, a eficácia geral da decisão (eficácia erga omnes) só passaria a valer quando o Senado Federal publicasse resolução suspendendo a execução da norma considerada inconstitucional pelo Supremo, como prevê a Constituição. Depois, na sessão do dia 19 de abril de 2007, pedido de vista do Ministro Ricardo Lewandowski suspendeu o julgamento.
Naquela oportunidade, quatro dos Ministros já se posicionaram sobre a matéria: Gilmar Mendes e Eros Grau disseram que a regra constitucional tem simples efeito de publicidade, uma vez que as decisões do Supremo sobre a inconstitucionalidade de leis têm eficácia normativa, mesmo que tomadas em ações de controle difuso (incidental), ou seja, aquelas que decidem questões no caso concreto, com efeitos entre as partes. “Não é mais a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa eficácia normativa”, afirmou Gilmar Mendes. “A decisão do Senado é ato secundário ao do Supremo”, disse Eros Grau.
Houve divergência, pois os Ministros Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa refutaram a solução proposta por Gilmar Mendes e Eros Grau. Mesmo afirmando que o dispositivo em debate é “obsoleto”, o então Ministro Sepúlveda Pertence não concordou em reduzir a uma “posição subalterna de órgão de publicidade de decisões do STF” uma prerrogativa à qual o Congresso se reservou. Segundo ele, as sucessivas Constituições promulgadas no Brasil têm mantido o dispositivo. Ele defendia então a utilização, no caso, da súmula vinculante, criada pela Emenda Constitucional nº 45/04, da Reforma do Judiciário.
Já o Ministro Joaquim Barbosa classificou como anacrônico o posicionamento do Juiz da Vara de Execuções de Rio Branco. “O anacronismo é do juiz. Portanto, do próprio Poder Judiciário”, afirmou. Ele defendeu a manutenção da leitura tradicional do dispositivo constitucional em discussão por ser “uma autorização ao Senado, e não uma faculdade de cercear decisões do Supremo”.
Os quatro Ministros concordaram que os dez condenados tinham o direito de terem seus pedidos de progressão do regime de cumprimento da pena analisados, individualmente, pelo Juiz de Execuções Criminais. Os Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau concederam o direito ao deferir a reclamação. Já os Ministros Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa concederam Habeas Corpus de ofício aos condenados, já que o primeiro indeferiu a reclamação e segundo não conheceu do pedido.
A “novela” continuou na sessão do dia 16 de maio de 2013 quando, mais uma vez, foi adiado o julgamento, em razão agora de um pedido de vista do Ministro Teori Zavascki.
Continuava, portanto, a discussão acerca da função desempenhada pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Senado Federal no controle difuso (incidental) de constitucionalidade das leis, ou seja, em decisões tomadas a partir da análise de casos concretos que chegam à Corte.
Aliás, quando se pronunciou no seu voto-vista, o Ministro Ricardo Lewandowski ressaltou que a competência do Senado no controle de constitucionalidade de normas tem sido reiterada, desde 1934, em todas as constituições federais, não sendo “mera reminiscência histórica”. De acordo com ele, reduzir o papel do Senado a mero órgão de divulgação das decisões do Supremo, nesse campo, “vulneraria o sistema de separação entre os Poderes”. O Ministro, então, salientou que a Constituição Federal de 1988 fortaleceu o Supremo, mas não ocorreu em detrimento das competências dos demais Poderes. “Não há como cogitar-se de mutação constitucional, na espécie, diante dos limites formais e materiais que a própria Lei Maior estabelece quanto ao tema, a começar pelo que se contém no artigo 60, parágrafo 4º, inciso III, o qual erige a separação dos Poderes à dignidade de cláusula pétrea que se quer pode ser alterada por meio de emenda constitucional”, destacou na opoertunidade. Segundo ele, o Supremo recebeu um grande poder, a partir da Emenda Constitucional 45, sem que houvesse a necessidade de alterar o artigo 52, X, da Constituição. “Os institutos convivem, a meu ver, com a maior harmonia sem choque ou contradição de qualquer espécie”, avaliou o Ministro Ricardo Lewandowski. Por esses motivos, o Ministro não conhecia da Reclamação, mas também concedia o Habeas Corpus de ofício a favor dos condenados.
Em seguida, o relator da ação, Ministro Gilmar Mendes, reforçou alguns pontos de seu voto, proferido em fevereiro de 2007, e acrescentou que a reclamação teria perdido o objeto por conta da edição da Súmula Vinculante 26. Por essa razão, o Ministro frisou que a ação estaria prejudicada.
Antes, no dia 1º. de fevereiro de 2007, mais uma vez, foi interrompida a análise da Reclamação por um pedido de vista antecipado do Ministro Eros Grau. Nesta oportunidade, o relator reafirmou que a “não publicação pelo Senado de resolução que nos termos do artigo 52, X, da Constituição Federal, suspenderia a execução da Lei declarada inconstitucional pelo Supremo não teria o condão de impedir que a decisão do Supremo assuma a sua real eficácia jurídica”, mantendo a liminar e julgando procedente a ação para cassar as decisões que, segundo ele, feriam julgado do Supremo. O Ministro explicou que “o Senado não terá a faculdade de publicar ou não a  decisão, uma vez que não se cuida de uma decisão substantiva, mas de simples dever de publicação, tal como reconhecido a outros órgãos políticos em alguns sistemas constitucionais”. “Essa solução resolve, a meu ver, de forma superior uma das tormentosas questões da nossa jurisdição constitucional. Superam-se assim também as incongruências cada vez mais marcantes entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e a orientação dominante na legislação processual, de um lado e de outro, a visão doutrinária ortodoxa e, permitamos dizer, ultrapassada do disposto no artigo 52, X”. Diante desse entendimento, à recusa do juiz de Direito da Vara de Execuções da Comarca de Rio Branco (AC) em conceder o benefício da progressão de regime nos casos de crimes hediondos, que há, portanto, desrespeito à eficácia da decisão do Supremo, eu julgo procedente a Reclamação para cassar essas decisões e determinar que seja aplicada a decisão proferida pelo Supremo”. (Fonte: STF).
Pois bem. A solução agora está dada.
Estamos diante do chamado “controle difuso abstrativizado”, expressão do Professor Fredie Didier Júnior, in “Transformações do Recurso Extraordinário” - Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins.” (Teresa Wambier e Nelson Nery Jr. - Coordenadores, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, pp. 104-121 (“A decisão sobre a questão da inconstitucionalidade seria tomada em abstrato, passando a orientar o tribunal em situações semelhantes.”).
Também neste sentido, era a lição do hoje Ministro Luís Roberto Barroso: "A verdade é que, com a criação da ação genérica de inconstitucionalidade, pela EC nº 16/65, e com o contorno dado à ação direta pela Constituição de 1988, essa competência atribuída ao Senado tornou-se um anacronismo. Uma decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, seja em controle incidental ou em ação direta, deve ter o mesmo alcance e produzir os mesmos efeitos. Respeitada a razão histórica da previsão constitucional, quando de sua instituição em1934, já não há mais lógica razoável em sua manutenção. (...) Seria uma demasia, uma violação ao princípio da economia processual, obrigar um dos legitimados ao art. 103 a propor ação direta para produzir uma decisão que já se sabe qual é!" (“O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro”, São Paulo: Ed. Saraiva, 2004, p. 92).
Ainda à época da polêmica, em artigo publicado no site www.paranaonline.com.br (acessado no dia 02 de abril de 2006), Luiz Flávio Gomes, afirmou:
“O STF reconheceu a inconstitucionalidade do § 1.º, do art. 2.º, da Lei 8.072/1990 (lei dos crimes hediondos) num caso concreto. Logo, de acordo com a clássica doutrina, essa decisão não tem (ou não teria) efeito erga omnes (frente a todos), sim, somente inter partes. Mas convém sublinhar que esse assunto está ganhando uma nova dimensão dentro do STF e é bem provável que chegaremos em breve à conclusão de que, em alguns casos, do controle difuso de constitucionalidade deve também emanar eficácia erga omnes e vinculante (o fenômeno já está recebendo o nome de controle difuso abstrativizado, consoante expressão de Fredie Didier Júnior. Aliás, foi precisamente isso que ocorreu, recentemente, naquela famosa decisão do STF que decidiu sobre o número de vereadores em cada município, que foi dirimida dentro de um Recurso Extraordinário (RE 197.917-SP). Com base na decisão da Suprema Corte o TSE emitiu Resolução (Res. 21.702/2004) disciplinando a matéria, dando-lhe eficácia erga omnes. Foram interpostas duas ADIns contra essa Resolução (3.345 e 3.365). Ambas foram rejeitadas e, desse modo, o STF acabou proclamando que essa eficácia (erga omnes), extraída de uma decisão proferida em RE, estava absolutamente correta (porque, afinal, o RE deve ser visto na atualidade não só como instrumento para a tutela de interesses das partes, senão, sobretudo, como “defesa da ordem constitucional objetiva”) (Gilmar Mendes). No caso do HC 82.959 acham-se presentes todos os requisitos dessa nota “abstrativizadora” (ou generalizadora). Com efeito, a decisão foi do Pleno do referido Tribunal. De outro lado, cabe asseverar que a matéria (progressão de regime em crimes hediondos) não foi discutida só em relação ao caso concreto relacionado com o pedido do condenado, sim, o tema foi debatido e discutido olhando-se para a lei “em tese” (não se voltou unicamente para o caso concreto). Ademais, houve a preocupação de se definir a extensão dos efeitos da decisão, para disciplinar relações jurídicas pertinentes “a todos” (não exclusivamente ao caso concreto). Chama atenção, nesse sentido, justamente o quarto voto favorável à tese da inconstitucionalidade, do Ministro Gilmar Mendes, que a reconheceu, porém, com eficácia ex nunc, não ex tunc (para frente, não para trás nesse ponto inovou-se como base legal o art. 27 da Lei 9.868/1997, que é instrumento típico do controle concentrado). Afastou-se o óbice legal para a progressão de regime nos crimes hediondos, entretanto, daqui para frente. Por que eficácia só ex nunc? Porquê dessa forma qualquer pessoa que tenha sido condenada e que já tenha cumprido pena em regime integralmente fechado não conta com o direito de postular qualquer indenização contra o Estado. Vigência e validade: já não se pode confundir a vigência de uma lei com sua validade. Aquela depende unicamente do preenchimento dos requisitos formais (discussão, votação, aprovação da lei, sanção, publicação e vigência). A validade, por seu turno, está coligada a exigências substancias (ou materiais), ou seja, a lei vigente é válida quando compatível com a Constituição (quando for verticalmente compatível com o Texto Maior Ferrajoli, Canotilho etc.). No momento em que o STF, por seu órgão Pleno, julga inconstitucional uma lei, retira-lhe a validade. O texto continua formalmente vigente, até que o Senado (CF, art. 52, X) suspenda a sua “execução” (ou seja, até que o Senado elimine formalmente o texto do ordenamento jurídico), mas não vale. E se não vale não pode ser aplicado por nenhum órgão jurisdicional do país. A conclusão a que se chega, destarte, é a seguinte: apesar da inexistência de norma explícita, o julgamento de inconstitucionalidade de um texto legal, pelo STF, na prática, mesmo quando se dá num caso concreto, no que diz respeito à sua “validade”, acaba produzindo efeitos “contra todos” e possui eficácia vinculante (sobretudo frente ao Poder Judiciário). O descumprimento da decisão do STF, por qualquer órgão judiciário brasileiro, para além de retratar uma convicção ideológica conflitiva com o Estado constitucional e democrático de Direito, dará ensejo a uma dupla consequência jurídica: (a) em primeiro lugar cabe a interposição de uma Reclamação junto ao STF (contra a decisão do juiz que está violando a declaração de inconstitucionalidade mencionada). Em outras palavras, pode o prejudicado, via reclamação, bater às portas desta Corte para que se reconheça seu direito de ver seu pedido de progressão examinado concretamente pelo Judiciário; (b) em segundo lugar, não se pode de modo algum afastar a possibilidade de uma ação indenizatória contra o Estado, por estar o Juiz afetando direitos fundamentais de um condenado, na medida em que recusa acolher uma declaração de inconstitucionalidade do STF ao mesmo tempo em que continua aplicando um texto legal já reconhecido como inválido. O descumprimento intencional e “irracionalmente ideológico” da decisão do STF, já anunciado por alguns juízes, pode indiscutivelmente implicar em responsabilidade civil do Estado (porque ninguém está obrigado a se sujeitar a uma determinada forma de execução reconhecidamente inconstitucional). Sublinhe-se que STF proferiu uma decisão tecnicamente perfeita e político-criminalmente correta, porque a impossibilidade de progressão de regime nos crimes hediondos é nada mais nada menos que expressão do Direito penal do inimigo de Jakobs, que sustenta a tese de que alguns criminosos devem ser tratados não como cidadãos, sim, como inimigos. Que o autor de crime hediondo seja tratado de modo diferente e com mais rigor é razoável, mas nem ele nem ninguém pode ser tratado como inimigo. De qualquer maneira, a pergunta que todos estão formulando agora é a seguinte: é justo que, nos crimes hediondos, verdadeiramente hediondos, o condenado cumpra somente um sexto da pena para o efeito da progressão de regime? Não seria o caso de se distinguir alguns crimes, exigir um pouco mais de cumprimento efetivo da pena (um terço ou metade, conforme o crime hediondo seja ou não violento), para só depois autorizar a progressão? Com a palavra o legislador brasileiro. De qualquer modo, mesmo que ele venha a disciplinar essa matéria de forma mais rigorosa, sua nova legislação não vai poder retroagir. Isso significa, na prática, o seguinte: todos os condenados por crimes hediondos podem postular ao juízo respectivo a progressão de regime, desde que presentes dois requisitos: cumprimento de um sexto da pena e bom comportamento carcerário. Recorde-se que o exame criminológico que era necessário para o efeito da progressão já não é exigido pela lei brasileira. A exigência desse exame constitui hoje ilegalidade patente. A lei dos crimes hediondos proibia a progressão de regime de modo peremptório e geral e, formalmente, não abria nenhuma exceção. Isso era muito rigoroso e era injusto em muitos casos. A partir da decisão do Pleno do STF (HC 82.959) o juiz pode conceder a progressão do regime em alguns casos concretos. Isso significa, na prática, conferir ao juiz muito mais responsabilidade, colocando fim à figura do “juiz carimbador”, que só tinha o trabalho de dizer: “crime hediondo, regime fechado”. Finalmente e felizmente começa a agonizar esse tipo de magistrado “despachante”. No Estado constitucional e democrático de Direito só existe espaço para um tipo de juiz: o que dá a cada um o que é seu, fundamentando todas as suas decisões, tendo por base a constitucionalidade, legalidade e razoabilidade. Inclusive no âmbito criminal, estamos começando a ver o fim do juiz burocrata, guiado por “automatismos”. A decisão ora em consideração, de outro lado, não significa que o STF “abriu as portas das cadeias”, para colocar na rua milhares de criminosos hediondos etc. A lei dos crimes hediondos continua, no mais, em vigor e a análise de cada progressão caberá ao juiz. Mas é certo todo ordenamento jurídico necessita de instrumentos que permitam ao juiz fazer justiça em cada caso concreto. Isso é fruto do princípio da razoabilidade que, apesar dos retrocessos, acompanha a constante e vitoriosa evolução da humanidade.”
Para ilustrar este trabalho, também é de rigor transcrever um texto publicado no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Ciminais – IBCrim, nº. 161, em abril de 2006, (bem) escrito por Fernanda Teixeira Zanoide de Moraes:
Na teoria, para que se confira caráter geral, com extensão erga omnes e não mais inter partes, a decisão do Supremo Tribunal Federal deve, seguindo preceito constitucional do art. 52, X, da CF, ser comunicada ao Senado Federal para que, exercendo seu poder discricionário – que envolve juízo de oportunidade e conveniência -, "suspenda a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal". Uma grande novidade trazida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, neste importante e histórico julgamento, está em conferir, em sede de controle de constitucionalidade difuso, efeitos ex nunc (a partir da decisão de inconstitucionalidade) e extensão erga omnes, tornando uma eventual resolução do Senado Federal ato inócuo. Pois bem. O controle judicial de constitucionalidade no Brasil é misto, pois se faz pela convivência entre dois métodos distintos: o controle concentrado ou abstrato (austríaco), pelo qual o órgão de cúpula do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal, poderá fazer o controle, em tese, de lei ou ato normativo federal ou estadual incompatível com o ordenamento constitucional, sem a existência de um caso concreto a ser solucionado (art. 102, I, "a", CF); e, o controle difuso ou aberto (norte-americano - judicial review), que pode ser exercido por qualquer juiz ou tribunal na solução de um caso concreto, observando-se, quando a inconstitucionalidade for declarada por tribunal, o princípio da reserva de plenário, embutido no art. 97 da CF, pelo qual a inconstitucionalidade somente pode ser declarada pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial. Quanto aos efeitos, no controle abstrato, por via de ação, a decisão do Supremo Tribunal Federal afasta do ordenamento jurídico lei ou ato normativo incompatível com a Constituição Federal e possui eficácia contra todos (erga omnes) e efeito retroativo (ex tunc), "desfazendo, desde sua origem, o ato declarado inconstitucional, juntamente com todas as consequências dele derivadas, uma vez que os atos inconstitucionais são nulos e, portanto, destituídos de qualquer carga de eficácia jurídica, alcançando a declaração de inconstitucionalidade
da lei ou ato normativo, inclusive os atos pretéritos com base nela
praticados (efeitos ex tunc)".Diferentemente, no controle difuso, por via de exceção, a decisão de inconstitucionalidade é tida como questão prejudicial de mérito e, por ser imperativo lógico, abarca apenas as partes envolvidas no caso concreto (inter partes), com efeitos também retroativos (ex tunc), já que a situação jurídica ocorrida se firmou em lei ou em ato normativo declarado inconstitucional. Em regra, referida decisão em sede de controle difuso pode adquirir extensão erga omnes, somente após a expedição de uma resolução pelo Senado Federal, suspendendo, no todo ou em parte, a execução da lei tida por inconstitucional em decisão definitiva do Supremo Tribunal
Federal (art. 52, X, CF). Neste ponto, a latere as inovações trazidas pelo julgado no campo do Direito Penal Constitucional, o julgamento do Habeas Corpus nº 82.959
também trouxe outras duas importantes peculiaridades na seara constitucional do controle de constitucionalidade. Em primeiro, flexibilizou-se a regra dos efeitos ex tunc em controle difuso, utilizando-se em analogia o dispositivo do art. 27, criado para o controle abstrato, da Lei nº 9.868/99. Esse dispositivo permite ao Pleno, por maioria de dois terços de seus membros, "tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado". Esse entendimento se extrai do conteúdo do voto do ministro Gilmar Mendes, que prevendo a avalanche de ações extrapenais, caso os efeitos da decisão de inconstitucionalidade fossem dados ex tunc, ponderou que: "reiteradamente, o tribunal reconheceu a constitucionalidade da
vedação de progressão de regime nos crimes hediondos, bem como todas as possíveis repercussões que a declaração de inconstitucionalidade haveria de ter no campo civil, processual e penal, reconheço, que, ante a nova orientação que se desenha, a decisão somente poderia ser tomada com eficácia ex nunc. (...) Ressalto que esse efeito ex nunc deve ser entendido como aplicável às condenações que envolvam situações ainda suscetíveis de serem submetidas ao regime de progressão". Na esteira desse raciocínio, o Plenário da Excelsa Corte decidiu fixar um "outro momento" a partir do qual a segurança jurídica e o interesse social estariam protegidos. Consta do teor da ementa: "o tribunal, por votação unânime, explicitou que a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito legal em questão não gerará consequências jurídicas com relação às penas já extintas nesta data, pois esta decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão". A nosso ver, a exegese aplicada pelo Su­premo Tribunal Federal – no intuito de conferir efeitos ex nunc - e abrangendo todas as condenações que ainda envolvam situações passíveis de serem submetidas ao regime da progressão, resguardou a aplicação mais favorável ao apenado, que poderá dentro do seu caso concreto, pleitear o benefício, caso ainda haja pena a ser cumprida, resguardada a apreciação, pelo juiz das execuções penais, do preenchimento dos requisitos objetivos e subjetivos para a progressão. Consoante já antevia Alberto Silva Fran­co: "em face desse entendimento, a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo legal terá eficácia a partir de sua prolação, atingindo, assim, os casos em que seja possível ao condenado a progressão no regime prisional. Isto significa que o efeito da declaração permitirá aos réus de processos em andamento, por crime hediondo ou assemelhado, desfrutar do regime progressivo; ao condenado em regime integralmente fechado, obter, na fase recursal, a transformação do regime imposto na condenação para o regime progressivo e, ainda, aos condenados, na fase de execução, progredir no regime prisional". Mas não é só. Da leitura da ementa do julgado nota-se a segunda peculiaridade em sede de controle difuso, referente à extensão da decisão para além das partes. Tudo está a indicar que o Supremo Tribunal Federal conferiu à decisão declaratória, que em regra teria apenas limitação inter partes, clara projeção erga omnes, ao prever que "o afastamento do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão". Como se vê, a postura unânime do Plenário, representa um nítido avanço no moderno direito constitucional e está em consonância com o princípio da economia processual, na medida em que torna desnecessário que um dos legitimados do art. 103 da CF seja compelido a propor uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (controle abstrato), com o mesmo fundamento, para que o Supremo Tribunal Federal decida do mesmo modo, com extensão erga omnes.Essa extensão, desde logo pelo Supremo Tribunal Federal, torna despiciendo o papel do Senado Federal e absolutamente dispensável a necessidade da resolução, isto porque, sua ratio essendi, desde a Constituição de 1934, é a de conferir publicidade, atribuindo eficácia geral e suspendendo a execução da lei em face de todos, o que já foi feito pelo Plenário. Não é outro o entendimento do constitucionalista Luís Roberto Barroso: "A verdade é que, com a criação da ação genérica de inconstitucionalidade, pela EC nº 16/65, e com o contorno dado à ação direta pela Constituição de 1988, essa competência atribuída ao Senado tornou-se um anacronismo. Uma decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, seja em controle incidental ou em ação direta, deve ter o mesmo alcance e produzir os mesmos efeitos. Respeitada a razão histórica da previsão constitucional, quando de sua instituição em 1934, já não há mais lógica razoável em sua manutenção". E conclui: "Seria uma demasia, uma violação ao princípio da economia processual, obrigar um dos legitimados ao art. 103 a propor ação direta para produzir uma decisão que já se sabe qual é!". Assim, como se nota, as inovações trazidas pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal vão além da observância dos princípios constitucionais da legalidade, dignidade da pessoa humana e da individualização da pena no âmbito do Direito Penal Constitucional, elas se espraiam e se irra­diam para além dele, estendendo os seus efeitos em face de todos que possuem condenações suscetíveis ao regime de progressão. Na prática, isto quer dizer, que todos os condenados por crimes hediondos e assemelhados que estejam cumprindo pena ou que venham a cumpri-la terão, por essa decisão, direito imediato à progressão de regime, desde que atendam aos requisitos objetivos e subjetivos da Lei de Execução Penal, podendo, inclusive, o magistrado competente exigir perícias complementares quando as peculiaridades da causa assim o recomendarem
.”
Conclusão: viva “o controle difuso abstrativizado”.
Evoé Fredie Didier Jr.







[1] Rômulo de Andrade Moreira é Coordenador do Centro de Apoio Operacional de Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público Estadual (BA). Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador - UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA) e IELF (SP). Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal” e “Comentários à Lei Maria da Penha” (em coautoria com Issac Guimarães), ambas editadas pela Editora Juruá, 2010 (Curitiba); “A Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares” (2011), “Juizados Especiais Criminais – O Procedimento Sumaríssimo” (2013), “Uma Crítica à Teoria Geral do Processo” (2013) e “A Nova Lei do Crime Organizado”, publicadas pela Editora LexMagister, (Porto Alegre), além de coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal” (Editora JusPodivm, 2008). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

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